quarta-feira, 29 de agosto de 2012

UM SONETO, NADA MAIS

Sem te olhar, sei quem és.
O incômodo de saber e não poder,
Esse não me tem.
Sou, sem hesitar, aos teus pés.

Se fazes, eu gosto.
Quando não, por quê?
Ao viver a te querer,
Meu amor, ao seu gosto.

Quando me perco, então venha.
E você comigo sempre é,
Por menos cuidado que eu tenha.

Por mais feliz que eu seja,
Pelo carinho que não só enseja,
Você, desejo, ao meu lado esteja.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

EM CADA PONTA DO FONE DE OUVIDO, UMA MÚSICA

Assim como na política, tema de um texto meu publicado no 2P (www.doisparagrafos.com.br), a música sofre o mesmo processo de esquizofrenia. Os ritmos, além de mais definidos em si, dificilmente se misturavam numa seleção pré-determinada. Hoje, não. A mesma pessoa ou grupo é capaz de saltar de um estilo a outro nada similar, sem talvez notar que não existe uma lógica nessa alternância. Enfim, parece não haver mais critérios para definir a playlist.

Nada de complexos: este artigo não quer estipular o que se deve ou não curtir. Embora conceitualmente haja mais ritmos que fazem jus ao substantivo música, cada um ouve o que quer. Ainda assim, o clichê de que política, religião, esporte e música dependem do gosto, e por isso não se discutem, é dos papos mais furados, afinal, qual o problema em botar tudo isso na roda? Pode surgir um atrito aqui e ali, mas nada que fuja ao protocolo.


O mote deste texto foi uma situação do último sábado. Nas proximidades de onde moro, ouvia-se um pancadão. Ao mesmo tempo em que falava de gente, trazia animais à história, supostamente fazendo referência ao sexo. Apesar da aparente incongruência entre as figuras, tudo indicava que a mulher era tratada como cachorra por um homem bem do valentão. Surpreenda-se: ambos estavam numa cama, transando.

Como se não bastasse um momento íntimo ser berrado ao mundo, que por uma obrigatoriedade moral é executado em local específico, privado, a canção seguinte veio a romper com a expectativa. Um adendo, novamente: não se questiona aqui a forma como o homem se dirige à mulher na cama (tanto a recíproca como as outras combinações na parceria também valem). Há um contrato entre o casal, e o limite é o que ficar acordado entre ambos. Mas, com o perdão do termo, até num puteiro o ato sexual acontece de modo privativo, e aí, sim, grita-se de peito aberto.

A bem da verdade é que na sequencia veio Legião Urbana. É fato que a banda agrada este blogueiro, mas não se tem a presunção de estampar o grupo de Brasília como modelo de música. Só que você há de convir comigo que o hiato entre um ritmo e outro é grande e, pergunta-se, o que faz alguém apreciar quase que simultaneamente duas concepções tão distintas de música?

Por que motivo o rock sucede o funk; guitarra e bateria moldam a melodia sertaneja; ou Michael Jackson usava foguete e pirotecnia e, atrelado a isso, simulava uma dança indígena, mesclando do primitivo ao desenvolvido na passagem de um segundo a outro?


Uma motivação seria o fato de a massa estar vinculada a uma só égide, a uma proposta de cultura ampla que tem como combustível a padronização, porque se todos consomem o mesmo, mais lucro. Com exceção às resistências aqui e acolá, a cultura funciona aos moldes de uma indústria, e a linha de produção necessita expelir as obras e as obras precisam ser vendidas. A ideologia hegemônica pinça elementos de todos os cantos, até para que o japonês ouça uma música americana e não estranhe: “mas o que é isso?”. Ou seja, se na concepção cada ritmo tem a sua peculiaridade, na prática as diferenciações são mais sutis, já que tudo é parte de uma mesma oferta. É fundamental ao sistema que o chinês, o angolano ou o brasileiro se veja ali, ao menos um fragmento de si mesmo em meio à miscelânea de signos. A tendência produtiva aceita o diverso, não sem antes adaptar, reinventar e empobrecer seus componentes.

Da parte do indivíduo, pode simbolizar a diversidade e um cidadão menos intransigente perante as questões que o afligem. Ou pode ser também um indício de falta de um posicionamento definido: “gosto de tudo, tudo me agrada”. Certeza esta que deve também faltar no âmbito de outras decisões, mais imprescindíveis do que optar por esta ou aquela canção. Não seria exagerado situar aí a identidade em crise, porque poucos são identificados e se identificam com um traço definido. Todos valem. É o homem insaciável, que anseia sem limites, mas pressupõe-se inversamente um certo acomodamento, pois mais fácil ser ninguém do que alguém.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

“EU SOU ASSIM, É O MEU JEITO”

Talvez não exista afirmação mais representativa da preguiça do que essa. Improvável alguém que não tenha ouvido ou dito tal subterfúgio. A má vontade em mudar faz do ano a ano só uma alteração numérica, mas os aniversários meus e seus têm uma utilidade bem mais nobre. Se um ano a mais de vida não servir para amadurecer o espírito, para desfazer erros, mudar opiniões, para fazer-nos olhar ao passado e perguntar “esse era eu?”, há uma boa chance de tudo isso aqui não passar de alguns presentes, muito blá-blá-blá e tapinha nas costas. Basicamente, a velhice é isso: o agigantamento do homem frente ao mundo.

Sei lá, mas soa egoísmo centrar no “eu” algo que não diz respeito somente ao “eu”. A maturidade de que falávamos no primeiro parágrafo não atua sobre o que sempre olha pra si. Este se esquece de uma pressuposição fundamental: o indivíduo é social, e qualquer atitude mínima de sua parte, seja verbal ou física, irá afetar alguém às redondezas. A não ser que se trancafie em um quarto, que vá morar numa ilha, finque uma cabana no meio da Amazônia, decida viver no pico do Himalaia ou no centro do Atacama, é necessário mentalizar que o que faço não para em mim, estendendo-se aos que comigo compartilham o espaço.


Desde um território mínimo, como a casa, onde se pode viver a dois, passando pelo ambiente de trabalho, até as ruas, local em que se situa um sem número de individualidades, o convívio será à base de encontros, do contato entre histórias. E é injusto impor um modo de ser, da mesma forma que desagradável é suportar o outro com o jeito dele, porque quem pensa assim não se preocupa com o companheiro, e acaba por infringir um limite. O “eu sou assim” submete a coletividade e pulveriza a diversidade. Além do mais, aquele que olha ao próprio umbigo terá desconforto quando outrem desempenhar a prática que tanto lhe convém.

A comodidade em permanecer como está traz um ônus à sociedade, que se adéqua ao meio, mas não vê um ou outro fazer igual. Ao mesmo tempo, torna o narcisista (termo impróprio?) estático no tempo. Sem evoluir, ele continua a olhar o mundo de cima pra baixo só porque “ele é assim”, e que se dane você. Ele não muda – e nem pode – em virtude do compromisso que preserva consigo, atestando-se um completo incapaz. Viver assim é mais fácil, sem afrouxar a vaidade, a soberba, sem entender que, em grupo, a permeabilidade de valores e conhecimentos é recíproca. Ser mimado agora, fazer birra por estar contrariado e recusar um posicionamento mais brando – assim é com todo mundo – não resolve. 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

VOCÊ É MELHOR DO QUE UM ÁRBITRO DE FUTEBOL?

Eu ainda não vivi o bastante pra ver torcedor, jogador, técnico ou dirigente de um time qualquer se manifestar indignado quando o seu clube é ajudado pela arbitragem. São-paulino que sou, nunca esbravejei palavrões ao ver o juiz apitar um pênalti inexistente ou validar um gol irregular a meu favor. Quando tudo isso acontece nas cercanias de Rogério Ceni, dá-lhe nariz torcido, sobrancelha franzida e humor pra poucos.

A nossa arbitragem é péssima, e se ela acerta com o seu time hoje, crave: amanhã ela te deixará estarrecido. Embora a incapacidade (não má fé, na maioria dos casos) seja generalizada, na Europa os “roubos” são incomuns e há mais precisão em lances complicados. O problema não é moral, mas técnico, que se resolve com treinamento e dedicação exclusiva ao ofício.


Questionar o caráter do árbitro só quando ele nos é prejudicial não faz de nós oportunistas? Evidente que a falha de uma marcação enganosa não se justifica, mas como o futebol tem o indissociável talento de imitar a vida, natural que o dito cujo traga as glórias e os fracassos do que está do lado de fora dos estádios, e viva Nelson Rodrigues.

Eis aí mais um traço da nossa paixão desmesurada (ops, pleonasmo): acusar o desvio do árbitro apenas quando nos convém é errar cretinamente, mais até do que o vilão dos gramados, e convenhamos que, depois disso, a nossa autoridade pra protestar decai. Se o crime está configurado quando me é contra, se favorável tem o mesmo peso. Mas, confortemo-nos: os espertos do mundo do futebol estão na faculdade, no trabalho, em casa, na política, na vida.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

POSSO ESTAR FALANDO COM VOCÊ UM MINUTINHO?

Texto publicado no semanário getulinense em 6 de julho de 2008.

Bom dia. Eu estou falando do BANCO QUE QUER SEMPRE TE ENGANAR e nós estamos oferecendo um ótimo plano para você. É o plano “enrolando você cada vez mais”, onde nós gostaríamos de estar dando a você um de nossos melhores serviços. Funciona da seguinte forma: você aplica o seu pobre dinheirinho em um dos nossos fundos de investimentos, fica pensando que sua grana vai render muito, quando na verdade os seus juros não rendem praticamente nada e, de quebra, nós aumentamos ainda mais a nossa margem de lucros.

Se você não se interessar, nós podemos estar oferecendo um outro benefício, porque não sei se você sabe... mas no nosso banco quem sempre ganha é você. Ou melhor, você sempre acha que ganha, mas, no fim das contas, somos nós os únicos beneficiados. Então... este serviço alternativo que nós podemos estar lhe dando é gratuito. Basta que você nos forneça o número do RG e CPF e permita que seja feito um pequeno desconto da sua aposentadoria ou do seu salário. Como você recebe R$ 415,00, nós abateríamos apenas a metade dessa quantia para criar um plano de vida vitalício. Afinal, viver com R$ 207,50 é uma moleza.

Mas não é só isso. Entre milhões de clientes, você acabou de ser sorteado para ser contemplado com um bônus mensal de R$ 500,00 durante um ano. Para que esse benefício seja efetuado, basta que você invista em uma de nossas contas espalhadas pelo mundo – é que a nossa quantidade de dinheiro é muito grande e é difícil nós restringirmos as agências a um país apenas, sendo que, brevemente, estaremos abrindo agências em Marte, Saturno e Júpiter, tudo para melhor atendê-lo, já que este planetinha não nos presenteia com tantas possibilidades. Pois bem, como eu estava dizendo, basta que você faça uma aplicação de R$ 500,00 mensais durante um ano, resgatando, ao final de doze meses, o valor excepcional de 6 mil reais. Não é fantástico?!


E se você pensa que acabou, nada disso. De acordo com o nosso levantamento, dentre os nossos 3 milhões de clientes espalhados pelo planeta, notamos que você está entre os nossos 2 milhões e 999 mil melhores usuários. É sensacional, não? Isso lhe dá o direito de ganhar um dos nossos 100 melhores serviços. Sem qualquer tipo de parcela fixa sendo cobrada junto a você, é seu direito, a partir de agora, ter o nosso cartão universal de compras. Com ele, você pode comprar produtos em qualquer um dos planetas do sistema solar, com um ótimo poder de barganha para negociar com os alienígenas que se atreverem a dar uma de espertinho para cima de você. O seu cartão poderá estar sendo liberado depois que você doar todo o seu dinheiro, os seus bens e se comprometer a ficar vivo durante 150 anos. Procure entender, são as cláusulas do contrato.

E para você se certificar de que nós não estamos fazendo nenhuma piadinha de mau gosto com você, estamos lhe presenteando com um de nossos mais requisitados seguros de vida. Desde que você nos repasse até as suas cuecas rasgadas, nós temos a honra – e você mais ainda! – de concretizar a oferta de um seguro de vida que está pela hora da morte conseguir um assim. Respeitando o parágrafo único do vínculo contratual, que diz que você não pode ter filhos, que é terminantemente proibido possuir qualquer parente que se inclua em cinco gerações anteriores e posteriores à sua e que você precisa praticar uma boa-ação, entregando de mão beijada tudo para o banco que se predispôs a lhe oferecer – porém sem jamais ter dado, já que nós não somos nenhum palhaço seu –, você pode desfrutar dessa maravilha sem maiores problemas.


Eu sei, eu sei. Você não deve estar acreditando. Eu imagino a emoção que você está sentindo nesse momento, com tanta coisa boa que estamos colocando à sua disposição sem nenhum interesse, sem nada em troca. Mas o nosso grande serviço está por vir. Desde ontem, sem que você soubesse, nós confiscamos a sua casa própria, o seu carro, a sua poupança que há anos você juntou. Tudo para que você não tenha qualquer tipo de preocupação e possa viver com a sua bela e nobre família debaixo de um viaduto movimentado, sob a sombra de um prédio projetado pelo Niemayer ou em uma dessas calçadas esburacadas, com sarjetas imundas e pessoas quase pisando em você, mas não te vendo. Tudo isso, fizemos pensando exclusivamente no seu conforto e bem-estar.

Bom, como você deve estar positivamente chocado com os nossos benefícios, nós poupamos você de responder que aceita todos eles. Consta do nosso cadastro que você já é usuário de todos os serviços fornecidos. Para sua maior comodidade, pedimos que você disponibilize tudo o que foi solicitado – desde documentos até a sua residência – para que nós não precisemos chamar a polícia, colocá-lo na justiça ou levá-lo para um campo de concentração aos moldes nazistas. Visando à sua total tranqüilidade, nós desligaremos o telefone, sem que você se atreva a dizer uma só palavra, para não contrariar o que foi combinado legalmente neste diálogo proveitoso.

E fique atento: a qualquer momento você poderá estar sendo selecionado para estar recebendo mais novidades. Até logo! BANCO QUE QUER SEMPRE TE ENGANAR agradece! Tenha um bom dia.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

DUVIDE DA VERDADE

Texto publicado em 5 de dezembro de 2010 no semanário getulinense. Um dos meus avôs ainda era vivo.

Era quarta, em uma dessas nada ociosas salas de espera hospitalares. Às oito da manhã o dia já era longo, visto que a saúde pública é para os mais resistentes, seguindo a proposição darwiniana. Mesmo sonolento, era possível perceber que alguém me olhava a algumas cadeiras dali. Ao meu lado, o lugar vago se colocava como um convite àquele senhor, solitário, incomodado pelo marasmo dos minutos sem companhia. Exatamente. Ele veio até mim, sentou-se à minha vizinhança e logo ordenou-me que lhe contasse algo pitoresco sobre mim.

É óbvio. Assustou-me o fato de alguém, sem nada que o motivasse, nada que eu tenha dado como permissivo, chegar-me confortavelmente exigindo um fato fora da ordem, totalmente inédito, ainda mais sobre a minha vida. Quem supunha ser o velho para julgar que eu estaria a fim de descrever qualquer coisa irreverente ali, num hospital, numa sala de espera, depois de uma noite mal dormida? Sim, em pensamento, ofendi seus entes mais queridos, inclusive o netinho que dormia inocentemente no carro.

Mas decidi desaforar o idoso. Sabia que a carta que tinha na manga iria arrebatar da sua face toda aquela tranqüilidade que a sabedoria dos anos – aos capazes, é claro – propicia aos espíritos rijos. Selecionei uma parte promissora da minha história, que certamente iria fazê-lo perder as referências e acovardar suas certezas. A passagem dos meus dois avôs pela Terra não foi ingênua, pacífica, que desmerecesse apreciações apaixonadas e rebeladas.

E comecei. Pelo meu avô paterno, brasileiro, filho de casal italiano, bondade rara, palavra doce, olhar terno. Mas o seu passado não hesitaria em confundir as opiniões de quem o julgasse. Vovô era fascista, foi à Itália pela honra e teve no entreguerras e no auge do segundo grande conflito seu êxtase dentro do regime. Após comprovada sua fidelidade à ideologia, fora nomeado assistente de general. Ao planejar o assassinato do seu superior, ascendeu e virou íntimo de Vossa Excelência, Benito Mussolini.


O meu mais novo amigo ficara cabreiro. Por que eu não poderia ser um herdeiro obediente de meu avô? Isso criava-lhe desconforto e arrependimento. Empolgado que estava, a diversão dava as mãos à minha mente, e história que seguia. Mencionei ao velho as execuções em massa lideradas por vovô, os jantares com o Duce, banhados a vinho, massa e estratégias macabras. As reuniões secretas com Getúlio, no Brasil, serviram como amenização às exigências cardíacas já esparsas do meu ouvinte.

Meu avô era dono de pensamentos firmes, finalizados. E seria de muito egoísmo não dividir uma dessas proezas com meu ouvinte. E lá fui, empreitar-me na dura tarefa de reproduzir uma mentalidade conservadora. O brasiliano vira e mexe encostava-me, balbuciando que o que mais o irritava em um bêbado, nesses passeios diurnos aos domingos, não era nem o bafo do dito cujo. Era a mania que o alcoólatra tem de divagar filosofias antes de pedir R$ 0,50 para tomar uma dose.

Mas o momento era pródigo em viabilizar-me o deleite, e indubitavelmente eu não negligenciaria o meu outro avô, o materno. Nascido no Líbano, tinha sangue e raiz no Islamismo e era perseverante e rígido quanto aos costumes tradicionais. Era magro, alto, fala escassa, certeira a momentos oportunos. E, da mesma forma, a sua trajetória ludibriaria o curioso pouco atento. Era o destino daquela pobre alma que diante de mim prostrava-se, desenganada àquela altura, penitenciando-se pelo erro cometido.

Meu avô nascera no fim do século retrasado. Eu sei. Em sua cabeça agora passa a hipótese de que ele, meu vô, portou Osama Bin Laden no colo, assoviando canções de ninar ao pequeno. Foi exatamente a ilustração que tomou conta da imaginação do meu desafiante. Foi isso que aconteceu, de fato. O pai de minha mãe foi um dos fundadores da Al Qaeda, grupo terrorista que mais tarde viria a por abaixo as torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. Após o término da primeira guerra mundial, vovô, ainda muito prematuro, herdou a responsabilidade de gerir uma das células do grupo, com sede em Beirute. A partir dali a organização ganhou contornos arrojados e audazes. Depois de alguns desentendimentos com o próprio Osama, vovô, já grisalho, desligou-se da rede, filiando-se ao Hezbollah, organização extremista libanesa. Eu me senti na obrigação de afagar as tensões daquela pobre criatura idosa. Nada melhor do que demonstrar-lhe o espírito patriota de meu avô.


Assim como o outro, meu antecedente árabe tinha das dele também. Ele indignava-se com Deus. Qualificava como inaceitável a bobeada da Criatura. Como poderia o ser supremo, sóbrio, racional e justo ter permitido enganar-se no Gênesis? Culpar a pobre serpente, pô-la a arrastar-se e praticamente absolver Eva depunha contra o seu legado. Em sua visão convergente, Adão e a cobra foram vítimas, e a maçã era o pretexto conveniente para disfarçar o ônus da culpa.

A essa altura o meu camarada nem me olhava. Inerte, seu olhar estático perdia-se no desengano. Por dentro, autoflagelava-se pela burrada cometida de encostar-se a um jovem desmedido. Mais ao fundo, duas filas de cadeiras atrás, uma senhora, distinta até, vestindo um conjunto de viscose, esbugalhava os olhos e perguntava-se por que não chamar a polícia. Um garotinho, que acordara no meio da conversa, chorava copiosamente, dizendo à mãe, apontando para mim, que aquele (eu) era o bicho papão ou o homem do saco de que tanto lhe falaram durante anos.

O homem finalmente olhou-me. Riu-me um riso opaco. Saiu, sem verbo, sem gesto, nada. Temeroso, vago de si, ainda ousou pensar em redimir a sua curiosidade mórbida em outra presença despretensiosa. Mas o impacto de mais uma aventura mal sucedida seria desbancar o seu norte. E preferiu o netinho a qualquer outra peripécia. Quanto a mim, retomei a leitura interrompida no dia anterior, mantendo as aparências, saltitante por dentro e pedindo perdão ao vovô daqui e do céu.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A BELEZA DE SER O QUE É

Talvez digam que é bobagem, mas quando alguém caga, parece ter se convertido em um criminoso. Pode apostar: se você ficar mais de dois minutos trancafiado num banheiro, as pessoas lhe apontarão o dedo, voltarão os olhos para ti e pensarão ou dirão: “foi você!”. Pronto, sua vida estará arruinada. As ações da bolsa caem, o dólar dispara, a mortalidade infantil aumenta, como se os hipócritas que o julgam nunca tivessem feito o mesmo. Mas, não. Eles te policiam, te censuram. Crave também: a merda deles fede mais que a sua. Mas, afinal, o que você tem contra?

Antes, lembremos de alguns elementos que depõem contra a “criatura”. Primeiro, cheira muito mal, embora em alguns casos seja possível a existência de uma cagada inodora, o que torna os moradores da mesma residência – e os convidados que nela estão – sempre muito gratos. Registra-se: é desagradável ter de suportar o cheiro produzido por outro, apesar de este não ter culpa, a não ser que tenha exagerado numa alimentação à base de ovos, repolho e batata. Pior ainda se o algoz for o cunhado, a sogra, o sobrinho insuportável. Aí, pode ter certeza: foi de propósito!

Outra coisa que serve de acusação é a aparência nem tão apreciável. Seja preto, marrom, verde ou amarelo, dependendo do que se ingeriu, nenhuma das cores e formatos – aguado, sólido ou enfeitado (com grãos de milho, por exemplo) – apetece a espécie humana. Nem mesmo é capaz de chamar a atenção do seu autor, exceto de uma criança, que vibra com a sua capacidade criadora, sem saber que o adulto para quem se gaba não dá a mínima para tudo aquilo.

Mas há mais motivos para abraçarmos as merdas que fazemos do que ignorá-las. Assumindo a filosofia de banheiro, a bosta é uma parte de nós. Quando excretamos a “obra” na privada ou numa moita, arremessamos ali um pedaço da gente. Quando cagamos, morremos um pouco mais, e uma fração da nossa existência sai da vida para entrar na história. Sim, aquela merda que agora você esnoba esteve contigo nos seus momentos mais difíceis.


Lembra daquele fora que levou? Daquele exame em que reprovou por meio ponto? Do momento em que atropelou um cachorro ao manobrar o carro no estacionamento do shopping? De deixar o palito de dente escorregar da sua boca e perfurar os pés do filho da sua esposa com outro cara? Então, nas situações de maior sofrimento e delicadeza, aquilo que agora você pôs para fora, e justamente por isso tu desdenhas, jamais o abandonou.

Quando um político diz uma bobagem ou um jogador executa um lance errado, é comum classificar o insucesso como “uma merda”, com todo respeito a ela, à bosta. Mania incurável esta de desmerecer quem mais tem afeto por nós. Até por isso não dá para entender a revolta de alguém que pisa no cocô, por exemplo. É como se naquele instante a ordem das coisas fosse restabelecida e a justiça se consumasse. O que de nós saiu, para nós retorna. Eis a metáfora do pó.

Sou a favor do movimento que anseia instituir o banheiro como um local sagrado, ritualístico, místico. É a hora da introspecção, do esquecimento, do empenho em aliviar-se do que incomoda e, ao mesmo tempo, de ficar órfão. O que é a merda, senão o alimento por nós tão valorizado e essencial à vida? O que é aquilo que cagamos, senão uma picanha bem macia, uma macarronada deliciosa ou um peixe saboroso? É o que desejamos, salivamos, só que com feições alteradas.


A nossa estada no vaso é qualquer coisa inalienável. Ali, estamos desnudos, desprovidos de qualquer proteção, resistência. No viés inverso, a nossa dedicação em defecar é capaz de sensibilizar o pior dos algozes. Pudera: se existem distinções entre as mais diversas pessoas, temos aí aquilo que nivela todo mundo. Não é o carnaval que coloca todos os brasileiros no mesmo patamar: é o momento de compor a merda. Pode mudar a pompa do banheiro, uns mais luxuosos do que outros, mas o que sai de dentro de todos nós é igual, independente de classe social, religião, etnia ou posições políticas.

Quando a vontade insuportável vier, aprecie e dê mais valor a quem te quer tão bem. Cultue, cultive esse vai-vem que embeleza a vida. Uma cagada não é qualquer coisa: é uma extensão sua que morre e, portanto, passível de condolências e reflexões. “O que fiz para honrar isso que se desvincula de mim e ganha os caminhos das redes de tratamento de esgoto?”.

Produzir fezes é a prova cabal de que vivemos, cumprimos objetivos e aguardamos outros tantos no porvir. Isso à parte, não há nada mais fabuloso do que a equiparação do homem com o bicho. Na verdade, o indício consumado de que somos um deles. Dentro da normalidade, expulsar o cocô da gente é tão óbvio quanto beber água, respirar, dormir, transar, viver, morrer. É parte indissociável da nossa trajetória. É condição precípua para que completemos o nosso papel aqui e entremos mais dignos no firmamento. Envergonhar-se é negar tudo isso, é correr o risco de ter o inferno como castigo.

Que os meros mortais dêem mais valor ao elo enfraquecido, banalizado, ridicularizado. Empreende-se aqui um manifesto em favor da bosta, aquela para quem todos apontam e é negada quando convém, esquecendo-se de que uma cagada gostosa é impagável. É evidente que o final é sempre o mesmo: o dever cumprido, o olhar vitorioso, o dedo na descarga e o discurso arrogante: “Que merda!”. Mas, afinal, o que você tem contra?

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A BRIGA DO GALVÃO E O CALCANHAR DE AQUILES DA TV

Em 1° de agosto, no programa Conexão Sportv, transmitido diariamente após o término diário de competições nas Olimpíadas de Londres, o apresentador e narrador Galvão Bueno discutiu com um dos comentaristas da emissora, Renato Maurício Prado, que participava também de outros programas do canal, como Redação Sportv, Troca de Passes e Bem, amigos.

O motivo do embate: em conversas de bastidores, Galvão cravou que a seleção brasileira de vôlei masculino teve caminho mais fácil à medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Los Angeles (1984) porque alguns países que compunham a União Soviética boicotaram o evento americano, em represália à recusa de muitos atletas dos Estados Unidos de participarem, quatro anos antes, dos Jogos de Moscou (1980).


Como principal força que fazia frente à delegação estadunidense no quadro geral de medalhas, ao perder atletas pela recusa de participar do evento, óbvio que o Brasil teria um adversário mais enfraquecido pela frente em todas as modalidades, assim como no vôlei que, diga-se, teve no belo time de 84 um divisor de águas na sua história, inaugurando uma fase vitoriosa a partir da década de 90.

O problema nisso tudo? No ar, enquanto Galvão comentava o feito da “Geração de Prata” com Marcus Vinícius, um dos jogadores da época, Renato interveio, e, em tom de brincadeira, pediu a Galvão que dissesse na frente do ex-atleta o que havia afirmado sobre o Brasil ter conquistado o segundo lugar muito por causa da ida de um time soviético mais frágil a Los Angeles. O narrador ficou em situação desconfortável e exigiu, já impaciente, que o colega retirasse o que havia dito. Renato também se exaltou. Depois, desculparam-se, mas as gentilezas parecem ter ficado só ali.


O que de tão absurdo Galvão disse? Rigorosamente, nada. A URSS estava desfalcada, o que facilitou o caminho do Brasil até a final. Se a Espanha chegasse à próxima Copa sem Xavi e Iniesta, fatalmente daria uma chance maior a um ou outro rival de avançar mais, sendo menos competitiva do que seria se tivesse os dois atletas.

O que faltou a Galvão foi sustentar a opinião sem dar chilique. Com receio da situação indelicada, preferiu contornar, ao dizer que o país poderia ter tido trajetória mais complicada, mas negando que o Brasil não conseguiria o vice-campeonato. Ficou mais feio, pois o óbvio é que a seleção brasileira, assim como as demais adversárias, saíram favorecidas do boicote soviético, e a prata veio em função disso. Em outras palavras, foi o que Galvão sustentou em off. Simples assim.

Como normalmente acontece em qualquer área de atuação, a corda rompeu do lado mais fraco. Ao menos por agora, Renato Maurício Prado não terá seu contrato renovado. É que a imagem e seus deslizes permanecem um tempo maior em voga. E se, com isso, a TV teme prejuízos, que se puna a imperfeição, eis seu lema. Mas, será pra tanto?

Impressionante a dificuldade que esse veículo tem de lidar com as falhas, com a sua atuação inexoravelmente permeada por defeitos. Cobra-se o intocável da TV, uma máquina que, assim com as outras, falha, controlada por homens que, assim como todos, falham. Só Galvão foi posto na redoma. Simples de novo.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

O TAMANHO DO TEXTO É PROPORCIONAL À REVOLTA

por Giovanna Betine

O argumento de todo jornalista que não defende o diploma é sempre o mesmo: "eu matava aula, não entregava trabalhos e hoje sou um profissional de sucesso". E desde quando isso confere legitimidade para não se cursar uma faculdade? Por que tomar um caso particular e a partir disso concluir que a formação superior não é importante?

Lembrando que nenhuma 
graduação capacita um estudante a se tornar um âncora no dia seguinte à colação de grau. Mas o objetivo da Universidade nem é este. Jornalistas "de mercado" estão acostumados a dizer que aprenderam na prática e não no banco da sala de aula. Dizem também que os professores estão distantes da prática para poderem ensinar, de fato, seus alunos. Bem, já participei de algumas bancas de TCC onde jornalistas "da prática" eram avaliadores. Resultado? Tinham dificuldade em aprofundar qualquer conhecimento sobre cultura, sociedade, ciência política. Truncavam seus pensamentos e não sabiam demonstrar ao aluno avaliado qualquer profundidade de análise. Mecanizados pelo mercado, estes jornalistas não enxergavam que além do lead, há o conhecimento do conhecimento (ou ao menos sua busca). Alguns desses avaliadores, após a banca, confessaram que foram surpreendidos por autores que falam com lucidez o que eles enfrentam no dia-a-dia. E completaram dizendo que, se tivessem buscado tais conhecimentos teóricos antes, saberiam conduzir melhor a prática.


Argumento pobre é o STF dizer que a obrigatoriedade do diploma impede a liberdade de expressão. Oi? Já pode rir? Economistas, sociólogos, advogados, engenheiros, filósofos etc, devem, sim, ter seus espaços resguardados para a publicação de artigos, colunas e crônicas. Mas a reportagem é jornalística. Assim como a apuração. Discute-se que um jornalista não entende de economia tanto quanto um economista e por isso poderia comprometer a notícia. Sou da opinião que TODO jornalista deveria passar por uma redação de jornal, pois ali se faz de tudo. Mas também penso que é preciso se especializar sempre. Ora, se gosto de cultura devo buscar uma pós, um mestrado, que me capacitem ainda mais para tal. Se eu quiser me enveredar pela cobertura política, tenho que superar a graduação e concentrar meu aprimoramento profissional no estudo do jornalismo político. Só a graduação é pouco, mas um "pouco" que é essencial.

Quando lecionava a disciplina de "Ética" no curso de Jornalismo, na minha primeira aula eu dizia aos alunos, "não vou ensinar ninguém aqui a ser ético". E continuo pensando assim. Ética vem de berço. Mas como diz Eugênio Bucci, só existe discussão ética onde há conflito. Essa é a essência da faculdade: a discussão, o questionamento, a pergunta, o confronto. Justamente porque a técnica (que deve, sim, fazer parte dos cursos) o mercado vai ensinar (ou estragar). Agora, jornalista que chega sem embasamento no mercado morre agarrado à pirâmide invertida e conivente ao seu editor.


O grande problema é a falta de leitura. Graduando que não quer ler Literatura, que não se interessa por História, que nunca leu Filosofia. Eis o desafio das perseguidas faculdades de Jornalismo: incentivar mais a leitura além do que é jornalístico. E este é meu desafio como jornalista e professora: plantar em meus alunos o gosto pela literatura, ainda que nem sempre eu consiga. Jornalista que não lê, não vai pra frente. Minha mãe costumava me dizer: "minha filha, como jornalista você tem que ler até bula de remédio"...rs...

Há muitos estudantes péssimos se formando por todo o Brasil. Pessoas sem bons textos, vago conhecimento e, principalmente, já dispostos a entregarem os pontos a práticas de comunicação levianas. Esse mau profissional terá seu diploma em mãos assim como o bom estudante que se forma. Entretanto, defender que a demanda de maus jornalistas justifique a queda do diploma é sofisma. Há médicos matando e assediando pacientes por aí, advogados se "prostituindo" a olhos nus. Engenheiros cujas casas não resistiriam a um sopro. Ah, e pedagogos que ainda falam para "mim" fazer. Vamos retirar, então, as faculdades de medicina, direito, engenharia e pedagogia também?

Muito do que li até aqui busquei por conta própria. Se conheço um pouco de Machado, Clarice, Guimarães, Saramago, Pessoa, foi porque fui incentivada a isso desde criança. Mas ter cursado Jornalismo foi uma das grandes decisões da minha vida. Tive excelentes e péssimos professores. Mas aos excelentes sou eternamente grata por terem me feito sair de dentro da caverna de Platão. Na verdade, às vezes ainda me pego entrando na caverna e enxergando por sombras. Mas isso já é culpa minha. Sou grata à graduação de Jornalismo como um todo. Se eu tivesse trabalhado numa redação ou assessoria sem passar pelo estudo, eu desconheceria a complexidade midiática e talvez acreditaria que jornalista é "formador de opinião".

Pode até parecer que as teorias do jornalismo e da comunicação não exerçam influência no fechamento de um jornal. Mas o editor que não souber o que é valor-notícia, agulha hipodérmica e os meandros da indústria cultural, não vai (NÃO VAI) atender, na essência do que isso significa, o interesse público. Dessa forma, não terá credibilidade.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

MELHOR O SILÊNCIO À HISTERIA

Ainda que o nosso orgulho impeça de admitir, temos uma necessidade vaidosa de mostrar aos outros aquilo que, em princípio, só nos interessa. Com poucas exceções que cada um de nós conhece, é rotineira a prática de tornar público algum ato, até para que o autor da obra se sacie com os elogios e a evidência. É quando a cabeça, dizendo “não”, tenta enganar o ego, e perde.

O relacionamento caminha por aí. Quantas vezes o homem ou a mulher não repercute uma declaração, não para ver o que o(a) parceiro(a) acha, mas visando o apreço dos outros. Diminui-se o amor, submete-o ao crivo popular e o estardalhaço é mais importante do que o sentimento pelo(a) companheiro(a). Do contrário, o ato seria externado a dois, pois se o mundo inteiro ou uma única pessoa sabe, indiferente.

Na religião há um pouco – ou muito – disso. A oração, a mais contundente herança divina, já não se basta silenciosa, já que mais importante do que conversar com Deus e pacificar-se é mostrar para alguém ao lado que se é crente. Se a reza objetiva a instância superior, compartilhar o momento de autorreflexão é dar à ação segundas intenções, a tentativa de provar-se magnânimo, a negação do que o ato, em si, propõe.


Quando se faz caridade, parece incompleto ajudar alguém sem que um aglomerado de gente tome ciência. Instaura-se a impressão de que a obra só existe e se consuma se for do conhecimento de pessoas que não possuem relação alguma com o fato. Enfim, neste caso, a benevolência não se volta à pessoa ou instituição carente. Se volta a si mesmo.

E na hora de pedir desculpas a alguém? Antes que a vítima de injustiça ouça o perdão, os presentes ao redor devem se inteirar do ato nobre do, antes, infrator. Quem errou espalha que se desculpou ou o fará, porque acima do reconhecimento da falha está a necessidade de que outros vejam a mudança de comportamento, e vem a aprovação pública, a turbinada no complexo de Rainha Má.

Convenhamos que usar uma situação e as pessoas que a integram para se promover dá trabalho e mente. Engana, porque desvia a ênfase do ato à repercussão, à ânsia de se ver apreciado por todos. Às próprias custas, a melancia no pescoço continua a ser a forma mais eficiente de se aparecer.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

NADA MAIS PARECE ASSUSTAR

São poucas as coisas que nos surpreendem. O vigente estado de simultâneos e indiscriminados acontecimentos sedam o homem, aquele que outrora chocava o mundo com as suas descobertas e criações, porque tudo antes era raro e, portanto, mais valioso. Hoje, não. Um turbilhão de novidades vem e... pronto: nada tão novo que não possa se tornar velho em pouco tempo.

Dois são os agravantes. O primeiro é o capitalismo, esse sistema que exige a recauchutagem do mundo periodicamente. As atribuições da economia são muitas para as 24 horas do dia, e não é por outro motivo que a nossa vida é mais atabalhoada hoje, com afazeres que nos esfolam o físico e a razão. A exigência do mercado é veloz, e dá-lhe o ser humano a produzir, comprar, trabalhar, estudar, dormir, tudo em um intervalo que o clichê diria ser “humanamente impossível”.

O segundo fator somos nós. Insaciável, a criatura humana garimpa incumbências onde já não mais há. E o faz por necessidade financeira e egoísmo. Quer ganhar mais porque tem pouco ou porque só ganha muito. Necessita demonstrar aos outros a capacidade que sabe possuir, mas conservá-la sem alarde é desvalorizar-se. Então, panfletemos. Ao publicar e ser parte do público, é emissor e recebedor de um emaranhado de feitos. Qual ainda está por vir?


Há não muito tempo, o aeroporto era atração turística. Lembro-me de uma viagem, ainda durante o ensino fundamental, que fiz a São Paulo no ano de 1992. Congonhas era o local em que poucos pisavam, só os ricos, símbolo de um Brasil pior do que o atual. Viajar de avião àquela época era o mesmo que portar um telefone celular ou manusear um computador, tamanho o ineditismo e atraso desse país que empacou e andou para trás em não poucas vezes.

Os relacionamentos também tinham algo de inaugural. O beijo consumava a afeição estabelecida de início, o semi-auge da cumplicidade entre corpos, o salto ornamental de uma fase a outra da relação. É bem verdade que, em tempos anteriores aos nossos, a submissão da mulher dava a ela o direito de retardar ao máximo o contato entre lábios e a respiração aproximada, ofegante e aquecida, mas escolher o gosto do beijo que desejava ter era um luxo agudo demais para a época. Razão pela qual não se quer aqui o saudosismo desregrado.

A nudez era o que de mais improvável existia. Quando a mulher aparecia com um centímetro do vão dos seios à mostra, era moralismo do mulherio rival e deleite da ala masculina. Uma vez que a falta de pano era tão pecaminosa quanto a mente despudorada, a abertura do vestido nas costas e a saia que quase chega ao joelho compensavam os homens com pensamentos insanos, ultrajantes. Não era o corpo em si, mas apenas a sugestão dele. A pele e a carne insinuavam-se, escondidas, à vista e desejadas, pois inatingíveis. Ah, como o cinema brincou com isso.


No esporte, a normalidade não é menos presente. Quem não arrisca, de antemão, o que o jogador de futebol dirá aos repórteres no pré-jogo? “Temos que respeitar o adversário, mas vamos jogar com garra e determinação em busca dos três pontos”. Depois do jogo, é “graças a Deus” para todos os lados. O excesso de falsa humildade e da fala óbvia permite ao público encantar-se com o jamaicano Usain Bolt, que afirma sem ruborizar: “Sou o melhor, ninguém pode me vencer”. Quebra a rotina, surpreende e é cultuado por isso.

E na política, o que nos faz perplexos? É sempre Vossa Excelência daqui, Vossa Excelência dali, e ninguém comete ato falho, cai em corrupção. Ainda que as evidências exponham todo o enredo de obscurantismo e falcatruas, há que se dizer inocente, como se somente uma foto ou um vídeo fosse prova elementar. Diante das saliências de que falamos, até uma imagem é desmentida, visto que o normal é negar o que até um energúmeno enxerga.

A ausência do fato que choca, daquilo que nos faz esbugalhar os olhos, manter a boca entreaberta, interromper a respiração e desacreditar no que os olhos vêem sustenta a normalidade. A alternância de uma coisa à outra nos leva a crer na novidade, que não se suporta, posto que ela, em si, é uma rotina. Nada nos faz escandalizados. O imprevisto é qualidade dos gênios, esses cada vez mais escassos opositores da rotina.

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A VELHA MANIA DE LIVRAR-SE DA CULPA

O que nos faz buscar sempre um culpado? Quase nunca é a gente, quase nunca são vários. O dedo apontado a alguém encerra o assunto, resume a história e a nossa angústia de não saber quem foi ou de supor que sabe, arrefece. Comodismo e negligência com os fatos fazem a realidade ser incompleta ou mentirosa. Mas a nossa impaciência – digo, má fé – em ter total domínio de inocentes e culpados tem resquícios lá atrás.

Quando Jesus foi aferroado na cruz, fez-se a conversão da história toda em uma pessoa. Nem o desaparecimento do corpo, o Cristo ressurreto e sua aparição não tiraram de Judas a condição de vilão exclusivo. Não se pretende aqui anular o papel de Iscariotes, torná-lo o injustiçado. Ele errou feio ao trocar Cristo por 30 moedas de prata e entregar o filho do Homem com um beijo, mas equivocado malhar só ele.


De todo conjunto que permeava a realidade da época, havia um sistema instituído que impelia qualquer tentativa de revolução, de se romper com o panorama vigente. Algo similar ao que sucede hoje? Sim, assim era e sempre será. Os que detêm o controle ideológico, político e econômico são os mesmos nas três instâncias, com raras possibilidades de quebra dessa tendência.

A linhagem de poder romana e judaica não dava brechas ao pensamento transgressor de Jesus. Trocando em miúdos, o nazareno causava desconforto às autoridades daquele período. O que falava e da forma que agia serviram como pretexto para os algozes fazerem o que fizeram. E, nesse sentido, Judas não foi mais culpado que Herodes, Caifás e Pilatos. Não nos esqueçamos também de Pedro, sobre o qual o Messias edificara a sua igreja. Simão negou o predestinado três vezes, sem contar no cochilo dos apóstolos em hora imprópria.

Seja no esporte, na rua, no trabalho, na faculdade ou dentro de casa, é quase que obrigatório alguém receber a culpa solitariamente. A necessidade de nomear um, e não a si mesmo ou a vários, tranqüiliza a consciência, tira o peso de não ser capaz de enfrentar o enigma insolúvel. Pensa aí se você nunca passou por isso, se em momento algum apontou o dedo pra se livrar da culpa ou encurtar discussões. Caso chegue à conclusão que sim, não me venha você botar a culpa em mim. Culpa sua, oras. Minha, jamais.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

MENOS DRAMA, POR FAVOR

A miséria ou a carência de ordem financeira e material é situação evitada pelo silogismo nosso de cada dia. Tão elementar quanto a ojeriza de Tom e Vinicius pelo sol ou a cadência perfeita da canção que homenageia uma bela mulher, é o direito de qualquer um a uma vida menos dificultosa. Há que se ter a bonança como meta, uma vez que a busca por algo melhor, toda entremeada de desafios, é o que nos evolui. É a dificílima dangerosíssima tarefa de conhecer-se a si mesmo. Certo? Errado.

Em tempos de campanha política – mas não só – a massa de candidatos se vangloria por ter tido uma infância pobre, como se o panorama de vacas magras os fizesse melhores que seus oponentes abastados. Talvez até sejam, mas não será só a pobreza ou a riqueza a definir o mais apto. Ao fazer isso, o ex-miserável desproporciona o problema pelo qual passou. Tem-se aí um sofisma, um raciocínio lógico que conduz a uma conclusão falsa: “Foi tão positivo viver mal na infância que agora isso me credencia ao cargo público”. Certo? Erro outra vez.


A mentalidade enganosa pode banalizar o problema que é dos mais sérios enfrentados por países como o Brasil de hoje ou de antes. Sendo pobre ou emergente, de economia polpuda ou rala, as perguntas sem respostas não mudaram tanto, e no solo tupiniquim o dinheiro teima em prosperar, mas distribuí-lo que é bom, muito pouco. O candidato valoriza a sua pobreza porque, como político, dará muito trabalho a ele resolver questões como essa. “Você é pobre? Não se preocupe, eu também fui. Há mérito nisso”. Lavam-se as mãos, uma incumbência a menos, dinheiro e corrupção adicionais.

O curioso é que quem já foi pobre, não quer mais ser. Quem é, quer deixar de ser. A miséria não é uma contingência, uma condição circunstancial, referendada pela instância divina. O pobre existe porque há um sistema político e econômico que encarcera as classes, o jogo de cartas marcadas é mantido. E não me venha com a história de que o capitalismo tem como pressuposto a liberdade. Pode até ser menos engessado que as demais proposições econômicas, mas o aprisionamento mais sutil é louvado por quem submete.


A síndrome do coitadinho ou a folclorização da miséria é mais uma das ilusões da política e da vida. Por estar mais vistoso, eu não sou menos digno do que o tiozinho estirado na esquina, com roupas desgastadas e desesperançoso. O Faustão não é menos honrado do que eu só por ter a fortuna que tem. Mensura-se o caráter por meio de outros parâmetros, mas quem, em sã consciência, se arrisca a dizer-se inocente? Fora essa discussão mais longa e impalpável, estejamos empenhados em anular, amenizar, denunciar a pobreza, ao invés de reverenciá-la.

Quando as dificuldades são enormes, não são poucos a enfrentar situações adversas. Não que se deva fechar os olhos a isso, mas a apologia às avessas, a ponto de cultuar o impropério que é a miséria, é demasiado descartável. Que os infortúnios se voltem ao autoconhecimento, à introspecção, e não virem megafones a vastas multidões. Alguém de ouvido atento pode achar interessante ser assim ou fazer-se de vítima. Sim, ela, a vítima, que se dá ao desfrute de não arcar com nada.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O BELO E O INSALUBRE DA VIDA ESTÃO NO LABIRINTO E A CÉU ABERTO

As cidades grandes importunam o interiorano. Ao perder-se em meio a arranha-céus, ao trânsito impossível, às etnias que se esbarram, ao barulho que perturba, desespera-se. Ele está em um local onde as referências se distanciam, porque as novidades, em quantidades cavalares, afetam a memória. O caipira está perdido, como se a imensidão de tudo fosse desabar e qualquer tentativa de fuga é em vão. O emaranhado de desorganização aborrece o bom senso dos que funcionam à manivela.

O interior, todavia sem a “dura poesia concreta de tuas esquinas, a deselegância discreta de tuas meninas”, tem bala na agulha e, ao seu modo, também pode atrair o encantamento e o desprezo. Mesmo sem o arsenal de opções da sua antítese, não há quem passe ileso a um vilarejo, uma ruazinha de paralelepípedos ou às vias sem mão única tomadas por botecos e cães vira-latas. A natureza é escancarada e respira-se verdadeiramente.


A calmaria das cidades que finalizam o mundo pode servir aos extasiados psicologicamente como água ao sedento, mas quem habituado está à efervescência, estar onde as novidades tardam a chegar pode enlouquecê-lo muito mais do que cruzar uma larga avenida paulistana de olhos vendados. Tudo aparenta vazio, monotonia, inatividade. Nada muda, e isso incomoda o mais tenso, igual ao homem que regressa da guerra e não tem quem matar.

A inexistência de dinamismo reforça a ligação entre as pessoas, a proximidade de cada um com o todo. Quase tudo o que acontece é de comum conhecimento, palpável ao mais desprendido, ao mais curioso. A sensação de pertencimento ao outro, de controle do outro faz das histórias, coletivas. O que sucedeu a você, chega a mim, e me sinto à vontade para comentar, questionar e julgar o que você fez e falou ou o que deixou de fazer e falar.


É a intromissão, o “cuidando da vida alheia” impondo-se, e apresenta-se na outra ponta da linha a prontidão em ajudar o vizinho, ao contrário da frieza metropolitana em que todos se desconhecem. A falta de privacidade em bandas interioranas constrói casas sem muros, sem cômodos, com imensos buracos de fechadura, de janelas sempre indiscretas.

A compaixão e o zelo dos confins não equivalem ao sossego, à garantia de que situações de ordem particular não se transformem em domínio público. Mas a indiscrição pode encontrar no outro uma vontade de estar em evidência, no falso sentido que a ideia “falem mal ou bem, mas falem de mim” pode compartilhar. Entre o pacato e o frenético cotidiano, mais difícil do que cravar o melhor, é habituar-se às saliências deste ou daquele lugar, que nos testam, intimidam, estraçalham ou cedem.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

ELEIÇÕES 2012: A FORCINHA, O VOTO NULO E AS REDES SOCIAIS


A praticamente dois meses das eleições municipais, as cidades se aclimatam para o pleito do dia 7 de outubro. A votação define os novos ou reeleitos prefeitos e vereadores por mais quatro anos, e toda aquela história que nós nos habituamos e cansamos de ouvir. O que serve a todos os municípios se vê em Getulina, e somam-se à regra algumas características importantes, tornando a disputa daqui ora comum, ora hilária, ora trágica.

Falemos da primeira das tragédias, essa mania rasteira apresentada por candidatos e que tem a aceitação de muitos que votam. Tem-se o costume em Getulina, por parte de vários postulantes a cargo de prefeito ou vereador – e esta parece ser uma prática vitalícia nas pequenas cidades –, de entregar o “santinho” ao eleitor e logo a seguir proferir a frase que já virou slogan em período eleitoral: “Dá uma forcinha pra gente”.

A frase empobrece o debate político, pois todo o processo de ver o que o candidato tem a oferecer, da viabilidade das suas propostas e da escolha por um deles fica limitado a dar a tal força a este ou àquele que pleiteia cargo político. Perde-se a oportunidade de discutir, e sejamos francos: se a criatura não tem a capacidade mínima de argumentar com bom senso o que pode oferecer, ele está apto a ser prefeito ou vereador?


Pior do que pedir uma força é aceitar dá-la. Mas se boa parte do eleitorado troca o voto por churrascos, agrados, promessas ou cargos, mesmo sem a crença real nos atributos do candidato escolhido, retribuir a força pedida não é o principal desatino. De qualquer forma, tentemos mudar a nossa mania. O voto vale um pouco mais do que carne e cerveja à vontade, uma função aqui, um presentinho ali. E se te pedirem a tão costumeira forcinha, pergunte se o candidato está fazendo uma mudança, empurrando um guarda-roupa ou algo que justifique o seu auxílio a ele. Ironias à parte, negue e estipule o debate.

Até diante disso e das promessas e planos de governo descabidos – porque nem toda conversa tem a obrigação e competência de traduzir a dúvida do eleitor em voto – o voto nulo é uma opção. O senso comum insiste em tachar a escolha nula como um equívoco, afirmando que votar assim é privilegiar um candidato ruim. De fato, os votos em branco ou nulos não são computados. Mas a opção por ninguém não é uma forma de privilegiar o postulante duvidoso, e sim a resposta por encontrar em todos deficiências consideráveis.

Para quem vota assim, não há candidatos piores ou melhores, uma vez que qualquer opção é ruim. Se o candidato X tem uma perspectiva de votos que o credencia a vencer o pleito, eu só devo votar em Y, com menos chances de ganhar, caso eu o julgue bom. Se assim como o X, o Y não for uma opção interessante, na minha visão ambos não estão aptos a assumir a posição que pleiteiam. Neste caso, o coerente é anular o voto, e não destiná-lo a alguém só pelo fato de estar mal ranqueado nas pesquisas.

É do processo eleitoral, no caso da eleição para prefeito, um ficar em primeiro e o restante perder a disputa. Nesse momento, há uma inversão de valores: o eleitor que não opta por algum candidato sai como vilão, quando a culpa de não haver a escolha em X ou Y é justamente de quem postula cargo político e a sua incapacidade de ganhar adesão eleitoral.

Para amenizar a incidência do voto branco ou nulo cabe aos candidatos atuarem em diversas frentes. Nas ruas, nas casas dos cidadãos, em pontos de grande convergência pública e nas redes sociais, local em que as pessoas se encontram virtualmente e ganha adesão diária de muita gente. É processo irreversível este que vivemos atualmente: a tendência é que os encontros, as reivindicações, os diálogos aconteçam no Facebook, no Twitter, enfim, na internet de um modo geral.


Ao eleitor, como não poderia ser diferente, é indicado inserir-se nessa prática. Se as eleições cada vez mais se instalarão no interior das redes sociais, é necessário que o votante busque formas alternativas de decidir seu voto, desde que os políticos também participem. Nesse sentido, há um grupo no Facebook cujo nome é “Getulina Eleições 2012”, com quase 1100 membros. Se considerarmos que o eleitorado da nossa cidade gira em torno de 8500 eleitores (de acordo com dados da eleição de 2008), as mais de mil pessoas que discutem as eleições no Face formam um contingente interessante que pode decidir o pleito.

É evidente que as redes sociais estão repletas de incoerências também, assim como há no corpo a corpo. Se na Grécia Antiga os cidadãos se encontravam nas Ágoras, as praças públicas, para discutirem assuntos pertinentes ao cotidiano, a modernidade trouxe os jornais e as aglomerações saíram das ruas e foram às livrarias e aos cafés. Hoje, os encontros se dão em grande escala no mundo virtual. Considerando que o mesmo prima pela velocidade, há mais quantidade do que qualidade. Mas, como dito, as redes se colocam como uma alternativa.

O próximo texto desta coluna será publicado no primeiro domingo de setembro e irá tratar de um assunto que incomoda o eleitor. Diante de cinco candidatos a prefeito, 75 a vereador e promessas impossíveis, qual o melhor candidato? Até o dia 2 de setembro, data da próxima publicação neste semanário, o leitor pode acompanhar diariamente textos novos sobre política e diversos outros temas no www.semcensor.blogspot.com.br. Olha a rede aí como possibilidade de amadurecer o voto e vetar a forcinha aos candidatos mais acomodados.