segunda-feira, 31 de março de 2014

O MALFADADO 1964: as feridas abertas e uma celebração à democracia

Há exatos 50 anos o Brasil era derrotado pelo regime militar. Vigorando entre 1964 e 1985, o golpe – e não revolução, por favor – legou ao país cinco generais (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) ao posto de presidente, em eleições, obviamente, sem a participação do povo. Em resposta às reformas de base de João Goulart, ocupante legítimo do cargo maior, os militares tomaram o país de assalto, não sem o apoio de veículos da grande mídia, de setores importantes da sociedade civil, parcela da Igreja Católica e retaguarda do governo dos EUA. Foram 21 anos de exílios, censura, torturas, execução e sumiço de cadáveres, tudo tendo como protagonista aquele que deveria zelar pelo inverso de todas essas aberrações: o Estado. O resto é o que a história nos conta, embora muitos brasileiros façam questão de não entender. Livros, filmes e o Memorial da Resistência, na Estação Pinacoteca, em São Paulo, podem auxiliar os mais desinformados.

Corredor ao fundo de quatro celas do antigo DOPS
(Memorial da Resistência - Estação Pinacoteca - São Paulo)

A rigor do fato, nenhum país merece ser governado por militares. E por quê? Pelo simples fato da sociedade ser, em sua maioria, civil. É contraditório ao extremo dar a alguém fardado o poder de gerir uma nação que é essencialmente civil. Esse é o primeiro ponto. O segundo é que existe um risco temerário em entregar a alguém armado o poder máximo de um país. Se a Polícia Militar, por exemplo, protagoniza aberrações em governos civis, imagine o que ela faria – como de fato fez entre 64 e 85 – num regime militar. Aos milicos cabem duas obrigações muito específicas e claras: proteger as fronteiras do país contra perturbações que possam vir de fora (exército, marinha e aeronáutica) e manter a ordem interna, função pertinente à PM, tudo com base no Estado Democrático de Direito.

Analisando a questão sob os vieses da Antropologia e da Filosofia, conceder o poder a um general significa recusar a evolução por que passou a espécie humana. O homem, por natureza, é anárquico (sem governo), ou seja, ele nasce sob a égide do “todos contra todos”. Quando a população aumenta e os indivíduos se veem incapazes de administrar os próprios desejos, surge a necessidade de ter alguém como aquele que os representará. Saímos, então, da anarquia para a arquia (governo), e o primeiro mandatário é um tirano (ou déspota). Uma única pessoa, assim, concentrava os poderes político, econômico, sacerdotal e MILITAR. Os tempos mais remotos da pré-história já haviam mostrado que um governante armado tende ao autoritarismo e a todos os excessos que deste provém.

Evidentemente, o modelo se mostrou ineficaz, porque o uso da violência era tamanho que os indivíduos não tinham em mãos o mote de sua luta: a vida boa. À medida que a inteligência se desenvolvia, a população buscava formas mais vantajosas de se viver bem. Do mesmo modo que deliberou sair do estado de natureza para o regime tirano, optou também por sair desde e engendrar pela política, na sua forma mais louvável que conhecemos até hoje: a democracia. É em Atenas que os habitantes – nem todos, é verdade – passam a discutir e definir rumos para a realidade em que viviam. É nesse momento que aparecem as leis. São elas que diferenciam o Estado Despótico do Estado Democrático de Direito. Enquanto naquele a autoridade se encontra acima de tudo e todos, neste a legislação submete, indiscriminadamente, governantes e governados. Em tese, temos aí o princípio da isonomia.


Por isso é que, em 64, o Brasil não deu um passo para trás. O Brasil se jogou num abismo de retrocesso, talvez o mais torpe de que fomos vítimas e protagonistas. Do ponto de vista dos direitos humanos, é possível que tenha sido o segundo pior momento em toda a nossa história, só sendo superado pelos absurdos da escravidão. Os que defendem os militares alegam que havia mais segurança, menos corrupção e a economia crescia a passos largos. Vamos por partes.

A violência, de fato, era menor, pois a sociedade brasileira somava, nas décadas de 60 e 70, a metade do que é hoje, quando muito. Isso sem mencionar a violência perpetrada pelo próprio Estado, por meio do seu instrumento mais perverso, a PM. Não é preciso ser muito engajado para saber que essa modalidade de violência não chegava ao conhecimento de grande parte da sociedade da época. Mas o pior de tudo isso é saber que os torturadores e assassinos não pagaram – e nem pagarão – pelos atos sumários.

Quanto à corrupção, a diferença entre hoje e 50 anos atrás é a difusão de notícias na mídia. Nos anos de chumbo, com a imprensa censurada, raramente passavam informações que denunciavam as mazelas do governo, cenário oposto ao que temos hoje, em que veículos perturbam – por vezes injustamente – políticos e partidos que, inclusive, detêm o poder. O jornalismo toca nas feridas da política, especialmente quando lhe é conveniente, algo que era impossível no período em que as redações eram frequentadas pelo pessoal fardado. Para não falar das empresas midiáticas que tinham como trabalho principal blindar os militares. Citam-se, aqui, as Organizações Globo, sempre a bater continência e a abanar o rabo à gente dos quartéis.


Na economia, no auge do dito “milagre brasileiro”, o país chegou a impressionantes 13% de crescimento, mas as desigualdades nunca foram tão grandes. Hoje, o país se expande menos, mas a diferença entre classes regrediu. Há problemas na economia, na segurança pública, na educação, na saúde a serem resolvidos. Os presidentes civis – Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma – não solucionaram questões que ainda são fundamentais, mas a melhor maneira de equacioná-las é pela via democrática, pois só ela permite o debate, a discordância, o aperfeiçoamento das ideias. Enfim, só a democracia oferece ao povo – o principal beneficiado da política – a chance de ele decidir sobre os rumos que quer tomar.


Fica bastante evidente que a ditadura militar e os seus adeptos simbolizam um retrocesso, um déficit de inteligência que não combina com os progressos humanos. É simples entender qual forma de governo é melhor, se democracia ou ditadura: se você vive num país livre, mas tem opinião favorável ao autoritarismo, a sua manifestação estará garantida, sem que qualquer democrata o coloque num camburão para ser torturado. Mas se você vive num país fechado e expressa opinião em favor da democracia, os ditadores não hesitam e te fazer passar pelas piores sensações, justamente aquelas a que nem um animal merece ser submetido.