sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sobre o comercial d’O Boticário e o preconceito entranhado

Achei a propaganda sutil, sensível e com narrativa muito bacana, surpreendendo a nossa mente pragmática que sempre espera o encontro de um homem com uma mulher, e, por isso, se assusta quando duas mulheres ou dois homens se tocam, compartilhando um sentimento que é lícito e conveniente a todos: o amor.

Os Malafaias, Felicianos e Bolsonaros da vida berram impropérios porque esquecem [ou seria pura ignorância?] que em 15 de novembro de 1889 – há mais de um século! – Estado e Igreja assumiram caminhos independentes. A laicidade da polis prega que as leis da igreja – seja ela qual for – valem para os rituais religiosos, mas não governam mais a vida na esfera pública.

 Malafaia blasfema contra a democracia. Ele é autor daquilo que chamamos de sofisma: parte de uma premissa falsa para construir um raciocínio lógico, que tem como meta postular-se como verdade.

Se a igreja é contra a união homoafetiva, basta não realizar cerimônias dessa natureza. Embora eu discorde, a leitura que as instituições cristãs fazem da Bíblia [transformando a homossexualidade em pecado] é uma leitura possível, e seria incoerente a igreja ir de encontro ao seu documento maior. Mas isso vale para o intramuros cristão.

À política, então, cabe o dever de conceder direitos aos gays, lésbicas, bi, travestis e transexuais, ficando aos cidadãos – não aos fiéis – a deliberação sobre as leis que normatizem a convivência em sociedade. Mesmo porque se fosse haver uma política com base na religião, de qual religião estaríamos falando? Da cristã? Espírita? Muçulmana? Judia? Umbandista? Do candomblé? Como são muitas – e isso é saudável para a constituição cultural de qualquer povo –, nenhuma governa, e o Estado aceita todas, inclusive o ateísmo. Simples.

Propaganda mostra o amor nas suas mais diversas e possíveis combinações 

A trans crucificada
A minha visão de mundo está calcada num tripé: felicidade, amor e liberdade. O movimento GLBT é legítimo e sempre terá o meu apoio. No estado democrático de direito, é fundamental que as minorias – este termo ultrapassa a ideia de quantidade – tenham os seus direitos resguardados. Do contrário, não há nem cidadania, nem democracia.

Não fiquei chocado com a crucificação encenada – isso mesmo, encenada – por uma atriz transexual. Da mesma maneira que muitos atores, inclusive da Globo, se propõem a isso em época de semana santa, que mal há no que fez a moça? Não houve ali qualquer tentativa de ridicularizar a fé cristã. Tampouco existiu banalização, algo que a igreja, evangélica e católica, sempre gostou de fazer com os “pertences de Jesus”, comercializando-os e lucrando horrores.

Viviany Beloboni foi mais uma atriz a representar, pelas vias artísticas,
uma passagem marcante da história humana
[Foto: www.noticias.uol.com.br]

De todo modo, é prudente ter cuidado com os símbolos, independente da religião. Particularmente, não me apego a símbolos. Pra mim, não passam de pedaços de madeira, metal e gesso. A própria igreja é um símbolo, ao qual nunca me afeiçoei. Embora sejam isso – apenas símbolos –, possuem representatividade para muita gente.

É possível que a ideia de reproduzir a simbologia religiosa tenha como alvo pastores midiáticos que valorizam a homofobia. Mas, ao fazer isso, o movimento atinge toda a cristandade, inclusive pessoas que militam pelos direitos de homo, bi, travestis e transexuais. É importante que a militância GLBT tenha estratégia e não dê aos abutres os argumentos que eles tanto querem. Definitivamente, não é quebrando imagens ou colocando um crucifixo no ânus – como já se viu na Marcha das Vadias, em 2013 – que se resolve o problema do preconceito. Os movimentos que buscam espaço na polis sem o uso da violência são todos legítimos. É só não meter os pés pelas mãos.

A democracia no argumento falacioso
Por outro lado, quem critica o movimento gosta de usar a ideia de democracia para destilar preconceito, como se isso fosse um direito. Não. O estado democrático de direito, cuja representação máxima é a Constituição Federal, não prevê em qualquer artigo o exercício da discriminação. Então, atentar contra alguém de forma preconceituosa passa a ser antidemocrático e, pasme, até crime.

Nesse sentido, é justo dizer que qualquer cidadão tem o direito de questionar e discordar da cena protagonizada pela transexual. E por quê? Porque ela poderia ter agido de diversas outras maneiras, mas, livre e conscientemente, deliberou fazer aquilo. Ou seja, a partir das vias racionais assumiu uma conduta. Isso passa a ser uma questão moral.

Trecho da Constituição Federal
[Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm]

Em contrapartida, questionar e discordar de alguém por ser gay, lésbica, bi, travesti ou transexual não é legítimo. As questões de gênero, ao contrário do que prega o ‘pastor’ Malafaia, não estão no âmbito do comportamento. Falamos aqui de uma condição. A natureza [instinto] do indivíduo se impõe diante de qualquer iniciativa racional, e ser gay, por exemplo, já não é uma escolha. Portanto, não temos, agora, uma questão moral. Qualquer questionamento torna-se descabido.

Mesmo assim, as polêmicas da Parada Gay em São Paulo – que foram isoladas, diga-se –servirão para legitimar a homofobia. E isso implica, pelo menos, três erros: primeiro, nada justifica um preconceito; segundo, quem erra não erra porque é gay, erra porque cometeu um ato falho, assim como você, hétero, está cansado de fazer; terceiro, muitos começarão uma cruzada contra os gays por causa dos eventos do último domingo, mas já tinham restrições aos homossexuais antes disso.

De acordo com estimativas da Polícia Militar, a manifestação reuniu 20 mil pessoas.
Segundo os organizadores da Parada, eram aproximadamente 2 milhões de pessoas.
[Foto: www.folha.uol.com.br]

A tentativa de inverter a ordem das coisas virá outra vez. Heterossexuais e porta-vozes do cristianismo se colocarão como vítimas. Aliás, as frases quase sempre começam da mesma maneira: “Estão tentando nos impor...” ou “Não que eu seja homofóbico, mas...” ou “Eu respeito a escolha dele, mas não concordo”. Besteira! Respeita nada. Além disso, não cabe a alguém discordar de um gay, mesmo porque, como já dito, só é possível a discordância em relação a uma deliberação racional.

Mas, descontente, haverá quem bote a democracia no meio: “Eu tenho o direito de manifestar a minha opinião”. Hitler manifestou opinião matando judeus. Um estuprador manifesta opinião transando com alguém, à revelia da vítima. O pedófilo manifesta opinião atentando sexualmente contra uma criança.