quinta-feira, 27 de outubro de 2016

PEC 55: crise, mentiras e alternativas

Amanhã (13) está prevista no Senado a votação em 2º turno da PEC 51 (antiga PEC 241, quando tramitou na Câmara), que estabelece o teto para os gastos públicos até 2036. No último dia 30, a Proposta de Emenda à Constituição foi aprovada em 1º turno com 61 votos favoráveis e 14 contrários. Como já passou pela Câmara, caso tenha nova adesão superior a 3/5 da casa, a PEC fica aprovada, sem a necessidade de sanção presidencial. O objetivo de Michel Temer é que toda a tramitação ocorra este ano para que, em 2017, as regras passem a valer. Saúde e Educação entram na contenção em 2018.

Os repasses serão feitos com base na quantia empenhada no ano anterior, corrigida pela inflação dos últimos 12 meses. Botando na ponta do lápis, o principal pecado dessa política fiscal é não proporcionar aumentos reais aos investimentos, congelando-os no parâmetro da inflação, além de viabilizar perdas ao longo de 20 anos, no comparativo com os índices atualmente despendidos. As medidas valem por duas décadas, mas daqui a dez anos o presidente em exercício poderá revê-las. Antes disso, só por meio de outra PEC.

Mas a PEC 55 acaba por falhar também no diagnóstico. Um déficit fiscal pode ser gerado por dois problemas: muito gasto ou pouca receita. Temer quer atacar o primeiro, quando o déficit do Brasil está, fundamentalmente, no segundo. O país não gasta mais do que deveria. Basta ir a uma escola ou hospital público para entender isso. Então, se a receita cai, é preciso encontrar formas de reavê-la. Em nota, o Conselho Federal de Economia (Cofecon) rechaçou a PEC e explicou os motivos do seu posicionamento. No vídeo abaixo, Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, fala sobre a Proposta, seus erros e exageros e em que caminho deveria seguir a política fiscal brasileira.


Que o país precisa reequilibrar as suas contas, isso é inegável. Culpa de Dilma, que deveria ter revogado, em 2013 (e não dois anos depois), a política de desoneração fiscal e concessão de créditos, que foi tacada certeira de Lula em 2008 para amenizar os efeitos do epicentro da crise: a quebra do mercado imobiliário dos EUA. A bancarrota norte-americana, aliada à decisão tardia de Dilma de reformular a política econômica (por interesse eleitoreiro), pôs o Brasil na conjuntura atual: desemprego em alta, déficit no orçamento e recessão. Pior: as conquistas inéditas de doze anos de gestão do PT (2003-14) – avanços que nenhum outro governo ousou gerar – sofrem retração.

Mas uma coisa é tomar medidas pontuais, proporcionais ao problema vigente. Outra é o que Temer quer fazer. Se a estimativa é que o país volte a crescer no próximo ano ou no mais tardar em 2018, por que estipular um teto de gastos públicos para as próximas duas décadas? É verdade que um PIB positivo não implica orçamento no azul. É provável que o déficit perdurará por mais de dois anos. Mas exagero achar que levará duas décadas para sair do vermelho. Como já dito, cortar despesas é importante, mas não pode ficar na afirmação vazia e genérica. É preciso pontuar que áreas sofrerão cortes (maiores e menores) e quais, por questões de necessidade básica, ficarão de fora. O resto é neoliberalismo vazio.

Alguns gastos são fundamentais, dentre os quais estão saúde e educação. Se com os investimentos atuais escolas e hospitais deixam a desejar, engessar o orçamento voltado às duas áreas é decretar a falência de ambas. Sendo assim, o mais coerente seria tirar saúde e educação do contingenciamento e, para o resto, regular os gastos. Numa comparação com o ambiente doméstico – Temer adora esse tipo de paralelo! –, é como se eu tivesse a necessidade de cortar gastos por estar desempregado. O que faço, então? Duas listas: uma com as necessidades elementares e outra, com as supérfluas. Não posso deixar de comprar alimentos básicos e água. Aí entra a segunda lista: cortar a TV a cabo, sair menos aos finais de semana, deixar de fazer uma viagem programada, comprar menos roupas, calçados, objetos para a casa.

A PEC e os bilhões de reais em perdas
Segundo a Nota Técnica nº 28, de Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides, publicada em setembro pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, em 20 anos de gastos congelados a Saúde pode perder até R$ 1 trilhão em investimentos. O pretexto do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, de que o montante atual é suficiente, não condiz com a realidade. Em 2013, o Brasil investiu em saúde, por habitante, um total de US$ 591. A Argentina, no mesmo ano, colocou o dobro: US$ 1.167. Se comparado ao gasto dos EUA com cada cidadão, a disparidade é ainda maior: os norte-americanos investiram, per capita, US$ 4.307, sete vezes mais que o Brasil.

Se fosse aplicada há 20 anos, a PEC só não teria sido prejudicial em 2003 [Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Ainda de acordo com o estudo, outro problema a que a PEC 55 parece não atentar é o envelhecimento da população brasileira. Com mais idosos, a demanda do SUS vai aumentar, algo incompatível com a medida tomada por Temer. Isso prova duas coisas: os governos do PT não conseguiram solucionar esse gargalo do país e o problema do Brasil não é só a alocação dos gastos, como argumenta Meirelles. Segundo os autores do estudo, o problema é de gestão e investimento. Enfim, falta gastar melhor, como afirma o ministro, mas falta dinheiro também, e ele será ainda mais escasso na vigência da Proposta.

Outra área de relevância social que sofrerá com a contenção de investimentos é a assistência. Em outro estudo do Ipea, intitulado “O novo regime fiscal e suas implicações para a política de Assistência Social no Brasil”, de Andrea Barreto de Paiva, Ana Claudia Cleusa Serra Mesquita, Luciana Jaccoud e Luana Passos, investimentos em programas como o Bolsa Família cairão quase pela metade em 20 anos: de 1,26% do PIB, em 2015, para 0,7% daqui a duas décadas. Em valores, as perdas podem chegar a R$ 868 bilhões até 2036 (Fonte: Folha de S. Paulo).

Na educação, se vigorar pelos próximos 20 anos, a PEC irá gerar perdas na ordem de R$ 480 bilhões, segundo dados da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara apresentados na coluna de Jânio de Freitas, no último dia 16, também na Folha de S. Paulo. O argumento de que a população brasileira vai envelhecer e, com isso, o número de crianças e jovens irá diminuir, reduzindo também a demanda por escola, seria sólido, não fosse o déficit atual entre o que é investido em educação e o que é preciso fazer para torná-la um lugar melhor. Em resumo, é impensável diminuir o orçamento da área.

Quanto maior for o crescimento do PIB, menor será o percentual de investimento em saúde 
[Fonte: Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides/Ipea]
Por outro lado, os programas que oferecem subsídios e desoneram tributos do setor produtivo, a chamada “bolsa empresário”, não sofrerão cortes, como apresentou matéria da Folha de S. Paulo. O custo disso em 2017: R$ 224 bilhões a menos nos cofres da União, ou seja, 3,4% do Produto Interno Bruto. Em valores correntes, a política fiscal para o ramo garante uma fatia do orçamento sete vezes maior que a destinada para o Bolsa Família (R$ 29,7 bi), bem acima também dos investimentos em saúde (R$ 94,9 bi) e educação (R$ 33,7 bi). Aliás, os valores postos em saúde e educação somados, excetuando gastos com pessoal, atingem pouco mais da metade do que o governo deixa de arrecadar junto ao setor de produção.

O pano de fundo da crise e as reais motivações de Temer
A partir daí, algumas constatações: é falacioso o argumento de que os encargos trabalhistas impedem mais contratações: se de um lado as empresas e indústrias arcam com custos elevados, por outro o Estado assopra a ferida. Segundo: importante que o setor produtivo não perca força por ser gerador de emprego, mas não entrar no contingenciamento, ainda que mínimo, comprova que o objetivo de Temer não é equilibrar as contas, e sim implementar o projeto denominado “Uma ponte para o futuro”, que, segundo ele, não foi aderido por Dilma. Justamente por isso – e não porque Dilma cometera crime de responsabilidade – houve a troca da presidente pelo vice no Planalto, segundo o próprio beneficiário do processo, Michel Temer.


Isso demonstra que Temer e sua equipe econômica parecem não entender de... economia, mesmo mal que acometia a ex-presidente e seu time. O capitalismo é um modo de produção cuja característica principal é o trajeto em uma linha curva. Trocando em miúdos – e quem tem mais de 30 anos como eu já pôde perceber –, a economia capitalista é oscilante: ela progride e o momento mais próspero é sucedido por uma crise, a partir da qual é preciso se reorganizar para voltar a crescer. Pois bem. Se o capitalismo é cíclico, por que estabelecer uma medida que será válida por 20 anos? Ela é apropriada para um período de recessão, mas o Brasil, como já dito, irá se recuperar antes de 2036. Aliás, é provável que o país passe por pelo menos outras duas crises econômicas até lá. Na fase superavitária, não há motivo para manter o investimento vinculado à inflação. Neste caso, recorrer à receita líquida volta a ser a melhor alternativa. Em suma, é uma medida muito duradoura e austera para um cenário que não será o mesmo ao longo duas décadas.

O papel da dívida pública no orçamento da União
Quando se discute o orçamento, alguns pontos como saúde, educação, cultura, programas sociais, infraestrutura, salário mínimo e previdência sempre estão em voga, na mira dos cortes, justamente os parâmetros que fazem a diferença para ampla porção da sociedade brasileira. Mas a maior fatia do orçamento da União é destinada a pagar a dívida pública e os seus juros.

Essa dívida é composta por três componentes: dívida interna em mercado, dívida externa e encargos no Banco Central. Somados, eles atingiram em 2015, segundo relatório anual do Tesouro Nacional, um montante bruto de R$ 778,1 bilhões. O orçamento reservou R$ 162,2 bilhões para saldar a dívida. E os R$ 615,9 bi restantes? São liquidados pela União:  o governo emite títulos da dívida e os põe à venda para sanar o déficit do orçamento com o dinheiro arrecadado. Os títulos são comprados no mercado por investidores – convenhamos, o trabalhador que vive com um salário mínimo por mês não participa da brincadeira. Esse jogo só aceita grandes fortunas. Quem adquire títulos passa a ser credor do Estado, pois, em troca, quer ser ressarcido com o pagamento de juros. Este percentual pode estar vinculado ao câmbio, à taxa Selic e à inflação.

Isso significa que os credores, além dos bancos, ganham – e muito! – com inflação, dólar e taxa básica de juros altos. Não é difícil entender por que índices que seriam melhores à população estando baixos tendem a permanecer altos, especialmente a Selic. O Bradesco, em 2015, isto é, com o país já em crise, teve lucro de R$ 17,1 bilhões, aumento de 14% em relação a 2014 (Fonte: G1). Na hora de sangrar o orçamento, a dívida e os seus juros não “entram na faca”. Em setembro deste ano, ela atingiu, em valores correntes, R$ 3 trilhões (dívida + juros). De acordo com o Plano Anual de Financiamento, a dívida pode chegar, ao final de 2016, a R$ 3,3 trilhões, o equivalente a mais da metade (55,9%) do PIB registrado no ano passado (R$ 5,9 trilhões) (Fonte: G1). O vídeo a seguir explica o que é a dívida pública, para que serve e como é usada.


O discurso, a prática e as alternativas
Se Temer estivesse preocupado em cortar gastos para a recuperação da economia brasileira, poderia tomar outras medidas: diminuir cargoscomissionados, taxar as grandes fortunas, conter as regalias do Executivo, Legislativo e Judiciário, cortar gastos com propaganda oficial – da qual o novo “presidente” tem abusado bastante. Entre manter privilégios ou direitos, a PEC 55 preserva os primeiros. Poderia também, em tempos austeros, não oferecer coquetel e jantar para mais de 400 convidados, cujo cardápio foi risoto, massa, vinho importado e salmão. Banquete pago com o nosso dinheiro e que Temer, republicano que não é, recusou-se a divulgar. A estratégia? Agradar a base aliada nos dias que antecederam a votação da PEC em primeiro e segundo turnos na Câmara. Claro que o valor não faria diferença para fechar o orçamento, mas se a ordem é conter gastos, é prudente evitar jantares pomposos.

Outra máxima do discurso do governo é o caos. A PEC é pregada como a salvação da lavoura. Sem ela, o país quebra. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, vislumbrou a catástrofe, afirmando que sem o teto dos gastos o Brasil vira o Haiti. Conclusão tão exagerada quanto falsa. Mas a receita é antiga, conhecida e habitual em regimes políticos com feições de tirania: o governo planta o medo na população e ele mesmo – e só ele – oferece o remédio para combater o problema. Contando com apoio irredutível do povo, temeroso por momentos difíceis, qualquer ação governamental está legitimada. Foi assim que Bush tocou o terror no mundo em praticamente toda a primeira década do século XXI.

Em tempos de polarização política, maniqueísmos e ódio, é importante não misturar alguns conceitos: o fato de se ter feito oposição a Dilma não implica abanar o rabo para tudo o que o sucessor faz. Por incrível que possa parecer, assim como a ex-presidente, Temer comete erros e age por interesse próprio e de quem o colocou na presidência. Independentemente do partido e da pessoa que se encontram no poder, é preciso discernir a doença do remédio, o problema real da aparente boa intenção em saná-lo, para que daqui a alguns anos a história não nos impute a vergonha.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

SER PROFESSOR

O texto pode soar doutrinário, mas a minha intenção não é legar à humanidade um modo universal de lecionar. Mesmo porque não atingi o que proponho aqui e, quando o fizer – se é que o farei –, será hora de repensar outros parâmetros, ampliar as fronteiras, uma vez que o passar do tempo se incumbe de gerar novas ansiedades em quem chega à escola. Naturalmente, isso impõe a quem nela já está a necessidade de atualizar-se.

Aqui, hoje, em comemoração ao Dia do Professor, apenas constarão a maneira como enxergo a escola e qual entendo ser a atuação do docente e, não menos importante, do estudante no processo de ensino-aprendizagem. É só uma forma de refletir sobre a profissão e homenagear todas e todos que se dedicam à sala de aula – e outros espaços de escolarização – com compromisso celibatário.

[Foto: www.blog.andi.org.br]
Ser professor é ter o domínio da epistemologia referente à disciplina da qual está à frente. Estar alheio ao conhecimento produzido na área seria determinar a morte prematura do estudante. O ambiente escolar pressupõe, claro, as sedimentações da história, mas também as novas demandas do mundo. O pensamento produzido pela ciência, desde que encarado de modo crítico, contribui para a formação do acadêmico. A teoria pressupõe atualização de conceitos e o percurso histórico das investigações científicas. Sabê-los é compreender a evolução da área e o contexto que redundou no momento atual. No caso do Jornalismo, minha área de atuação, é imprescindível apresentar as primeiras publicações impressas e as circunstâncias em que se estabeleceram. Porém é preciso discutir, igualmente, de que forma jornais e revistas podem sobreviver em um cenário dominado pela tecnologia. Essa é apenas uma dentre tantas discussões que o curso pode fazer.

Mas para ser professor não basta isso. Porque sem didática – ou seja, os recursos de exposição do conteúdo e dinâmicas de atividades para fazer a teoria ser compreendida pelo estudante –, o docente é como um livro fechado: o conteúdo está lá, mas se não chega a quem de fato importa, de que adianta? Conhecer as teorias é o ponto de largada. No entanto, sem a didática o competidor não cruza a linha de chegada. Se a escola não se presta a realizar o aprendizado do estudante – e isso só se dá na transformação da teoria em conhecimento, justamente por meio da didática do professor –, melhor seria o docente ficar em casa, ruminando o que sabe na solidão de sua própria companhia. Dependendo da didática, o professor transforma o estudante em aluno, mero espectador de um monólogo. Dependendo da didática, o estudante atua, produz, provoca o docente, desafiando-o a sair das caixas do positivismo, do pragmatismo e de tantos outros “ismos” que ainda atormentam a academia.

Trecho do livro "Extensão ou Comunicação?", de Paulo Freire, publicado em 1968.
[Foto: Thiago Cury Luiz]
Para fechar o tripé, o lado humano não é carta fora do baralho. Parece óbvio, mas não custa lembrar: o professor não é alguém que, na intimidade do seu trabalho, aperta parafusos. A companhia do docente é o estudante, a sua razão de ser, o pedaço que falta para sentir-se inteiro. O discente é quem dá sentido ao professor, a fazer deste alguém ainda admirado, com algum reconhecimento. Ao professor, ter o entendimento de que a escola não pode reproduzir as relações de opressão de que a sociedade já está repleta é fundamental para que a sala de aula cumpra o seu papel de fomentar a cidadania, um dentre diversos princípios democráticos que precisam ser postos em diálogo nos espaços de ensino-aprendizagem. A escola, definitivamente, não deve se limitar ao mero tecnicismo da transmissão de conteúdo, tal como transferimos arquivos de uma pasta para o outra no computador.

Um saravá às professoras e professores que fazem do ofício uma proposta de vida; aos docentes que tanto me ensinaram; aos colegas e companheiras, sem deixarmos de refletir acerca do que podemos fazer para melhorar o que aí está, peitando os retrocessos que as políticas governamentais tentam nos impor com PECs e "escola sem partido"; e aos estudantes, a outra metade da nossa existência, os que nos fazem voltar no dia seguinte com a esperança de que é possível fazer diferente e melhor.

domingo, 31 de julho de 2016

A GOTA D’ÁGUA: eu e o “nunca mais”

Quando eu vim, só havia metade de mim. A outra, assim, respondeu ao chamado de Deus: “sim”. E tal como a gota da torneira, incessante, que faz barulho no copo cheio d’água, as duas palavras teimam em atormentar meu pensamento: “nunca mais...”, “nunca mais...”, “nunca mais!”. “Nunca mais” de tudo aquilo que fizemos aos montes e do que deixei pra depois, e não faremos.

Faltou o netinho, faltou assistir a uma aula minha, faltou conhecer o apartamento novo em que projetei expectativas de quando fosse me ver. Não deu. Faltou um beijo a mais, um “te amo” a mais, um olhar que deliberei desviar, protelando tudo para “a próxima vez”, na arrogância de achar que sempre haverá uma próxima vez. “Nunca mais!”.

Mas de tudo o que faz falta, um dói mais: o abraço que eu quis dar, mas resisti. A mais, agora, o lugar à mesa, no sofá, na varanda, no carro, o silêncio transbordante, ferida que machuca, saudade que aperta, vazio no peito incontido. "Nunca mais!".

A mulher que ia ao aeroporto se despedir de mim nunca mais irá encostar na grade e me acenar. A viagem dela, ao contrário das minhas, é sem volta. Quando eu voltar depois, e depois, e depois, ela não estará lá pra me sorrir com um abraço. “Nunca mais!”.

Quando ela foi, levou junto de si um preenchimento de mim. E o vazio, que em circunstâncias normais é nada e, por isso, desprezível, agora vira grandeza palpável e intimidadora, pois é tudo o que há em mim, algo a ocupar a existência de ponta a ponta, sem intervalos ou sossego. “Nunca mais!”.

[Foto: www.compranotamil.com.br]
O sofrimento é um direito, neste momento, do qual não abro mão. Remoer os arrependimentos, digerir a ausência, rememorar as vivências são lidas árduas, diárias e protocolares nesses tempos de introspecção. Com o olhar no lugar vago, porque só assim o pensamento e o inconsciente visitam a dor sem medo. “Nunca mais!”.

Ela, a dor, é tamanha, a ponto de se impor, a priori, sobre o tempo. Ele, habituado a passar depressa, se encolhe, tira o pé do acelerador, como se fosse intenção sua colocar quem sofre num moedor de carne que funciona em velocidade mínima. É imperativo ter paciência. O arranhão que fere a alma, definitivamente, não cicatriza de uma hora pra outra. “Nunca mais!”.

Nesses quase 20 dias, cabisbaixo, fui capaz de desejar o que escapa à razão: imaginei que, ao buscá-la nos espaços da casa que mais a identificavam, por um motivo extra-ordem, ela pudesse estar lá. Levantava a cabeça e... nada. “Nunca mais!”.

A mulher que deitou ao meu lado quando tive medo da escuridão noturna, que me vestiu pra ir à escola, que brigou comigo quando fiz arte, que vibrou junto de mim as minhas alegrias e que me ensinou que as tempestades da vida a gente enfrenta sem reclamar foi lá pra cima e virou estrela. Eu, que não sou bobo nem nada, nas noites de angústia e aborrecimento, vou olhar pro céu, escolher o brilho mais bonito e gritar em silêncio: mamãe. E vou pra cama dormir e sonhar, pra nunca mais, nunca mais, nunca mais te esquecer.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O estupro sob a luz da filosofia de Kant e Nietzsche

Se um homem bebe o suficiente para não conseguir manter a lucidez... Se um homem sai com quantidade de roupa a esconder pouco o seu corpo... Se um homem anda sozinho até altas horas na rua ou vai a um baile funk, nada disso servirá de base para justificar um estupro. Motivo: o homem, em geral, não é alvo desse tipo de atentado. Quando apenas a mulher é vitima e só ela corre o risco de ser violentada sexualmente, temos estabelecida uma cultura, um hábito, um costume que virou rotina e, portanto, é aceito. É cultural considerar a mulher como objeto sexual, a saciar o desejo do homem quando este deseja. Por se colocar como superior, é legitimado socialmente ao homem infringir a vontade feminina. Ainda que sem consentimento, a mulher deve se contentar com o seu papel de submissa. Historicamente, à mulher não é dado o direito ao prazer, ao gozo, sensação que só o homem pode ter. Eis a cultura que temos em voga, que, por ser nociva, é necessário combatê-la.

Em Kant, desejo e vontade são colocados como dimensões distintas e até opostas. O desejo, proveniente do instinto e das emoções, deve ser rechaçado pela vontade, fruto da inteligência e do pensamento racional. Só que o desejo não se controla, justamente porque as contenções comportamentais são acionadas apenas pelas nossas faculdades intelectivas. O que é instintivo simplesmente desabrocha, sem qualquer capacidade de censura, de uma coerção premeditada. Mas entre a excitação e o ato, ou seja, a materialização do anseio no corpo de outra pessoa, há uma distância considerável. Não há moralidade ou imoralidade no desejo, mas na vontade, sim, pois esta é deliberada ou pode ser evitada. De modo que cabe a nós, seres pensantes, propormos o descolamento entre um e outra. Um cachorro, por exemplo, não é capaz de dissociar o desejo de transar da transa, e, assim, o cão é um bicho amoral [a sua conduta não é moral, nem imoral].

No Brasil acontece um caso de estupro a cada 11 minutos
[Foto: www.amarujala.com]
Nietzsche, pensador que faz oposição a Kant, coloca uma ideia que, contextualizada, irá concordar com a de seu conterrâneo. A violência é intrínseca ao homem, característica que o condiciona. Os macacos já eram violentos, ensejando a espécie que iria sucedê-los. Como exemplo, a violência imputada como castigo, segundo Nietzsche, não serve para reparar ou compensar um erro, mas é, antes de tudo, prazerosa. A agressão é excitante e tem como princípio o poder sobre outra pessoa. O estupro, em síntese, é isso: um homem invade, a contragosto da mulher, a sua intimidade. E ele o faz não porque está excitado. Ele o faz porque quer demonstrar poder, de igual modo que o senhor fazia com o escravo: açoitava-o não como punição ou método reparador, mas como instância de poder e prazer. Se o problema fosse a excitação, caberia ao homem se masturbar, e a questão estaria resolvida.

A diferença entre o estuprador e quem discursa botando a culpa na vítima quase inexiste. O agressor caminha por aí porque encontra conforto na impunidade, que, por sua vez, se aconchega no pouco caso que a sociedade ainda dá à violência contra a mulher. Naturalizada que está, o preconceito de gênero legitima tudo, transformando uma aberração como o estupro em coisa normal, parte da cultura que não é aniquilada. Resignar-se aí é ter as mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda sofrem todos os dias. O disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões conflituosas como Kant e Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto. . Resignar-se aí é ter as mãos manchadas nos atentados que as mulheres ainda sofrem todos os dias. O disparate é tamanho, que até filósofos de opiniões conflituosas como Kant e Nietzsche chegam a concordar em ao menos um ponto.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Desnudando o golpe [ou o “impeachment”, como preferem os golpistas]

Em nome de Deus, dos meus filhos, das minhas netas, do coronel Ustra, pelas forças armadas, pela paz em Jerusalém, o meu voto é ‘sim’.

Houve de tudo no histórico domingo, 17 de abril. Quase nada sobre crimes de responsabilidade, os únicos, segundo a lei, a destituírem uma presidente do seu cargo. Estranho, uma vez que Dilma Rousseff, eleita em pleito direto, está como ré de um processo de impeachment. Este é, de fato, um dispositivo constitucional e, portanto, democrático e republicano. Mas se não se menciona crime quando a ocasião é propícia, crime não há. E se o argumento pelo “sim” não carrega no seu núcleo a denúncia de um desvio, o processo não é de impeachment: é de golpe.

Dilma botou o dedo em Furnas. Cunha emburrou e ficou de mal da presidente.
[Foto: www.blogs.oglobo.globo.com]
O que determina a instauração, o andamento e o julgamento final não são decisões equivocadas de uma gestão – ainda que delas devam surgir cobranças e indignações. A Constituição [Art. 85 e 86] e a Leinº 1079/50 são claras quanto a relacionarem o impedimento a crimes de responsabilidade. O desemprego, o corte de investimentos na educação, a inflação e todas as demais deficiências de ordem socioeconômicas são preocupantes, mas não caracterizam crimes. A gestão de Dilma é questionável. O seu mandato, não.

Mas o congresso deu tudo de ombros. Nada que surpreendesse. O mais reacionário dos nossos últimos parlamentos, a geração mais criminosa que tomou as bancadas legislativas agiu como dela se espera: com o deboche e a hipocrisia que lhe são peculiares. No domingo [17], uma deputada, ao votar “sim”, vociferou moralismos e usou o nome do marido como exemplo de político. Na segunda [18], quase antes que o galo cantasse, viu o nobre esposo, prefeito de Montes Claros [MG], ser preso. Outra vez, nada fora da curva. Foi sempre dessa forma que a nossa classe dominante se comportou, criminalizando a mulher, os homossexuais, os negros, os pobres, mesmo tendo o próprio quintal imundo. Com raras exceções, o que se viu ali foi o reduto do machismo, da homofobia, do racismo. Fico a pensar: um congresso tão monstruoso surge de uma política carente de reforma ou temos ali o retrato perfeito do que é a sociedade brasileira hoje?

O meu marido deve ser preso porque é corrupto? "Sim, sim, sim, sim, sim, sim!"

Um congresso que teima em botar o nome de Deus em meio às decisões políticas sugere não saber a sua devida finalidade – nem a do congresso, nem a de Deus. O que carece aos representantes que assim o fazem é o trivial: entender que a laicidade fundamenta o Estado, que a polis é deliberada pelas condutas racionais, e não místicas, míticas, alegóricas, fantasiosas. Os espaços de cultos e rituais devem ser assegurados com base nas liberdades religiosas consagradas no Art. 5º, Inciso VI da Constituição. Todavia, Deus, Cristo, Maomé, Alá, Buda ou qualquer outro personagem religioso, ao menos numa República, não ditam os rumos da coletividade. A fé compete à intimidade de cada um. Inclusive é dado, a quem desejar, o direito de rechaçá-la. Num país de crenças diversas como o nosso, eleger uma como oficial é o riscar do fósforo para fazer do Estado um perseguidor, um inquisidor. Nos dias que correm, o exemplo do vínculo entre fé e política é o Estado Islâmico [EI]. Parece-me ponto pacífico que o EI não traz qualquer contribuição à vida de quem quer que seja. A maioria entre os próprios muçulmanos atesta isso.

Não é tão difícil ver o que se passa. Tarefa árdua é um golpista aceitar. Porque o golpista sabe que Eduardo Cunha [PMDB/RJ], presidente da Câmara, está em maus lençóis. Ele sabe disso. Mas o golpista é, por excelência, um pragmático, maquiavélico: em benefício de um fim, tomado pelo ódio ideológico, ele é capaz de qualquer artimanha. “Dilma deve sair do poder. O PT deve ser extirpado”. Para isso, vale ter Cunha no jogo, o primeiro e único, entre a gente graúda de foro privilegiado, a ser réu na Lava Jato. Não, ele não é um mero suspeito ou investigado. Ele será julgado no STF e, provavelmente, enquadrado. O golpista olha Cunha no centro da mesa diretora da Câmara, fazendo a bola rolar numa das maiores decisões que pode haver no regime republicano e democrático, e está convencido de que ali há um contraventor. O golpista tem noção de tudo isso. Mas, pra ele, golpista, assim como o deputado que legitima, vale tudo pela meta.

O golpista sabe que Temer é traidor e sabotador. Ele sabe que, se o partido rompeu com o Planalto, o seu compromisso moral deveria ser o mesmo: sair da vice-presidência. Não é ilícito permanecer, mas é de uma incoerência abissal. Da cadeira de vice, já projeta o governo que cairá no seu colo. Porém exigir coerência de Temer, do PMDB e de um golpista, é pedir demais. Fiquemos no que é superficial, no degrau raso e baixo que o golpista consegue pisar. Do segundo andar pra cima, tudo fica turvo.

"Nada é impossível de mudar". Poema do teatrólogo alemão Bertolt Brecht, narrado por Antonio Abujanra

O golpista sabe: o movimento que tanto apoia e do qual é manifestante nasceu maculado, e isso implica a contaminação de tudo o que está por vir. Ainda que Dilma não sofra cassação no senado, o golpista estará com o “G” do ferrete cravado na testa, já que defendeu um processo pelos esgotos das vias legais. O resultado pode ser um ou outro, mas se a concepção está envenenada, envenenado o resto estará. O golpista é sabedor de que tudo isso está posto. Ele só não está habilitado a compreender, numa reflexão mais ampla, a mediania entre o que se critica e os caminhos do combate ao que não está bom.

Mas o golpista planta a sua reivindicação numa terra, cujo adubo é a ignorância, a alienação, o ufanismo. Na sua conta, só cabe o “fora, Dilma. E leve o PT junto”. Slogan dos oposicionistas nas eleições de 2014, está aí a comprovação de que o que ocorreu anteontem foi, de fato, o 3º turno. O PSDB, habituado às derrotas na disputa honesta, conseguiu vencer da única maneira que lhe era viável: no tapetão, na mão grande, nas tramoias subterrâneas em conluio com os conspiradores do PMDB. O movimento, liderado por Temer e Aécio, tem em Eduardo Cunha o seu testa de ferro. O presidente da Câmara é um gângster. Mas há que se admitir: ao contrário do vice traidor e do mineiro mal perdedor, nunca escondeu quem é.

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O golpista tem noção de que o governo corre riscos em várias frentes. O TSE está em vias de comprovar que a chapa Dilma-Temer, assim como a de Aécio-Aloysio, recebeu verba proveniente de obras superfaturadas da Petrobrás. E isso seria inapelável. Neste caso, a presidente e o vice decorativo seriam cassados e, em acontecendo neste 2016, novas eleições são convocadas. Se a anulação vier em 2017, eleições indiretas, pela voz do congresso combalido, infinitamente mais criminoso que Dilma, sobre a qual, é importante sempre lembrar, não paira qualquer crime. O golpista tem isso em mente, mas não importa. Se é o túnel mais curto que o leva ao outro lado da montanha, é por ali que tudo deve ocorrer, ainda que o túnel seja de areia, e, frágil que é, um dia verá escancarado o seu pecado original. Mas o golpista é assim: pensamento tacanho, visão de baixo alcance, o tipo que acha que o amor é monopólio das relações heterossexuais.

O golpista, vencedor de um jogo impuro, se veste com o uniforme da CBF. Simbólico! O time que, também em 2014, foi humilhado por 7x1, tem no golpista o seu maior torcedor. No germe do golpe, materializado pelo seu porta-bandeira, está a derrota, tudo em plena sintonia num movimento que tem no conservadorismo, no retrocesso e no reacionarismo os seus alicerces. Combater a podridão no reino da Dinamarca com estratégias fétidas não dignifica a causa. Pelo contrário: contamina a ideia no nascedouro.

Patinho feio na última Copa, a seleção brasileira protagonizou o maior vexame da história do futebol
[Foto: www.jcrs.uol.com.br]
O golpista tem em Sérgio Moro o seu baluarte. Antes dele, outros tantos: Aécio, Cunha, o japonês da PF. O adepto do impeachment suspeito é consciente de que o juiz admitiu grampos feitos além do horário autorizado por ele mesmo, tomando-os como provas. Mais que isso, desprezou a legislação e botou no balaio da justiça de 1ª instância gente que não compete a ela. E veio a cartada final: liberou à imprensa peça de alto interesse jurídico – e, assim, sigiloso –, horas depois de interceptada. Pelo puro espetáculo, Moro jogou pra galera. Preferiu incriminar alguém cometendo uma sucessão de delitos. Duas semanas depois, pediu “respeitosas escusas” ao STF e fez o que deveria ter feito no início: enviou os áudios envolvendo personagens de foro privilegiado à Suprema Corte. O juiz, por uma daquelas ironias do destino, assinou o atestado de réu confesso. O golpista viu tudo isso, no fundo sabe que Moro fez uso de expedientes de exceção, mas a obra messiânica de livrar o Brasil do comunismo não deve ser interrompida. Afinal, o país não pode se transformar numa nova Venezuela, Cuba ou Bolívia.

O golpista sabe que a TV Globo e a revista Veja são seus porta-vozes. Ele não tem a menor dúvida de que a grande imprensa faz o trabalho sujo no âmbito simbólico e percebe que, às portas da saída da presidente, o noticiário sobre a Lava Jato – não sem conveniências – já vai minguando. Ele não é suficientemente alienado para não perceber que o governo, em verdade, está até a tampa de movimentações reprováveis, entretanto é sabedor de que o jornalismo de maior projeção fez um trabalho seletivo, a ponto de ignorar o que de positivo o governo executou e os vícios da oposição. Por parte desta, da mídia e do golpista não há indignação contra a corrupção. O problema, definitivamente, é o PT. E o golpista, de intelecto limitado, bate o pé no chão, faz birrinha, chia. Tal como a criança que tira a bola do jogo porque não foi escolhida por nenhum dos dois times e vai embora aos prantos chorar as mágoas no colo da mamãe, o golpista faz escarcéu por Lula e Dilma... e mais ninguém.

Ouvi e li que os professores de História terão dificuldade de explicar, lá na frente, tudo o que está acontecendo. Não terão. É tudo muito simples, claro e, por isso, deslavado, sem qualquer pudor. De igual modo, é papel dos cursos de Jornalismo entender e detalhar para os postulantes a profissionais da imprensa como se deu – ora oculto, ora escancarado – o trabalho da mídia em dias de marcha à ré. A psiquiatria não encontrará empecilhos para traduzir a esquizofrenia de se falar em Deus no âmbito da polis, de se ter um criminoso como chefe do julgamento. A dramaturgia não se furtará em esmiuçar a farsa. A ciência política saberá facilmente detalhar as mancomunações de Temer e Aécio, a desfaçatez de Cunha, a obsolescência de Bolsonaro e Feliciano, todos capitaneando, com vozes impolutas, uma ação desavergonhada.

Quando alguém, a discordar de isso tudo, perguntar-se “devo seguir o enjoo?”, mesmo em tarefa árdua, a despeito de ser feia, sem pétalas, sem cor, a flor é capaz de furar o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio. No chão duro e estéril, da improbabilidade de se ter vida, um regalo de esperança que faz a roda não emperrar.

O nojo e a esperança de Drummond

A democracia está tombada. Mas ela sabe se reinventar, é capaz de agregar personagens que fortalecem a causa e pode, como é do seu feitio, resistir às aberrações que aqui e acolá tentam conduzir o Brasil “ao que não tem decência, nem nunca terá; ao que não tem vergonha, nem nunca terá”. Porque quando a roda-viva chegar e carregar o destino, a viola e a saudade pra lá, haverá sempre alguém, com viola na rua, a cantar: “a gente vai contra a corrente até não poder resistir e quem inventou a tristeza terá de ter a fineza de desinventar”.

E depois que tudo passar e que der a sensação de que a onda retrógrada triunfou, de que os democratas estão alijados, à margem da ciência sobre o que de fato acontece, os dados ainda estarão a rolar, porque o tempo, as coisas e as gentes estão aí, diligentes e engajados, em prontidão para redimir a história.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“O amor só é bom se doer”

O amor tem os requintes de uma arapuca. Possui essa mania de se preservar sorrateiro, de comer pelas beiradas, de ficar ali como quem não quer nada. No começo, tudo é sem intenção, como se a novidade das coisas se encarregasse disso e daquilo. Um olhar, uma palavra, o sorriso úmido a ferver as entranhas de quem espia. E vem o beijo. E, antes dele, a vontade. O intento de querer o outro lábio no nosso, quando antecedido de muito ensejo, já carrega em si mais que desejo. Não há no ato de descansar uma boca na outra mera saciedade, o arremate de uma pulsão que nos faz bichos. Não. Quando dos rituais menos efêmeros, existe uma pitada de sentimento que inverte o eixo da lógica: se antes era necessário rapidez para matar o desejo, agora quanto mais tortuoso o caminho, maior a fome. O amor tem o hábito de se consolidar em bases semelhantes a essas. A felicidade é suprema.

De igual modo, o seu fim parece lento. É como se a bondade do amor, nos idos do princípio, virasse à casaca, mudasse de humor despretensiosamente e quisesse judiar. A praia em calmaria vira ressaca. Da mesma forma que custa a constituir-se, como quem precisa de protocolos e cerimônias para se firmar, o amor também se esvai paciente e, por isso, cruel. A letalidade é ainda mais impiedosa quando, do lado de lá – ou cá – o sentimento se comporta intacto. Ouvir que tudo findou arranha a alma e deixa sequelas que o tempo, dito ‘senhor de tudo’, sofre a curá-las, em especial quando o romance não dura apenas “quinze meses e onze contos de réis”. Todavia, antes de escutar a palavra capital – ‘acabou!’ –, a gente sabe que a rua é sem saída, mas prefere o engano. É segurar alguém pelas mãos, que, por uma força alheia, é levada pela maré de volta ao mar revolto. Como se viver à base de uma esperança fomentada artificialmente, que não encontra resquícios quaisquer na realidade, pudesse redimir o nosso insucesso, que está logo ali, com capa preta e foice às mãos, de prontidão a desferir o golpe derradeiro. A dificuldade de lidar com o fim é evidente: o problema não é apagar o passado, extrair da memória todos os momentos de cumplicidade. A questão é: como abortar todas as projeções? É como se uma máquina, concebida para funcionar de um jeito, precisasse ser reconfigurada, uma vez que a demanda agora é outra. Ofício árduo. A melancolia triunfa sobre a felicidade.

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Respeitando a inabalável 3ª Lei de Newton, se o mundo gerou frustração, normal que o coração embruteça. E o entristecido se fecha pro mundo, desrespeita muitas – pra não dizer todas – formas de sentimento que outras pessoas lhe têm, só porque julga que, caso se entregue, o mesmo infortúnio de outrora cairá sobre ele. Procura garantir que nenhum outro amor fracassado irá derrubá-lo, levá-lo à fossa, lugar de onde as pessoas que vivenciam o amor têm certa dificuldade de sair, quando ele – o amor – vira pó e arrebata. Para saciar uma pretensa necessidade de se proteger, constrói uma caverna, e nela se põe em clausura até que o tempo – de novo ele! – o alforrie dos medos cravados ao derredor da infelicidade. E perturbado pelo receio de notar-se no fundo do poço, anula qualquer chance de estar na condição inversa. É o atleta que, por medo da derrota, recusa-se a competir. Aquele que teme amar outra vez até neutraliza o sofrimento, mas também não regozija. Contenta-se com a passibilidade dos apetites e vive uma vida medíocre. As intermitências da existência escasseiam e inexiste o estímulo de lutar contra o que não se quer. Enfim, a opção por não sofrer é aderir a um trajeto sem curvas: seguro, porém entediante. O medo supera a melancolia e a felicidade.

Quando os olhos castanhos te meterem mais medo que um dia de sol, é prudente lembrar que “quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém”. É possível que sofra? Sim. Com um mundo tão dinâmico e intenso, com tanta gente boa e interessante por todos os lados, a probabilidade de tudo acabar é muito maior. E quem disse que um relacionamento findado obrigatoriamente deu errado? A julgar a nossa quedinha pela rotina, facilitadora de tudo, pois não nos exige qualquer empenho, o muro que separa o deleite e o mal êxito é de areia, prestes a ruir. De certa forma, o amor é um jogo de sorte e azar, sendo que a chance de levar um tombo é hedionda. Assim como na vida, que tende a ser mais triste que feliz. Só que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste, não”, e a esperança vence a felicidade, a melancolia e o medo.