segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“O amor só é bom se doer”

O amor tem os requintes de uma arapuca. Possui essa mania de se preservar sorrateiro, de comer pelas beiradas, de ficar ali como quem não quer nada. No começo, tudo é sem intenção, como se a novidade das coisas se encarregasse disso e daquilo. Um olhar, uma palavra, o sorriso úmido a ferver as entranhas de quem espia. E vem o beijo. E, antes dele, a vontade. O intento de querer o outro lábio no nosso, quando antecedido de muito ensejo, já carrega em si mais que desejo. Não há no ato de descansar uma boca na outra mera saciedade, o arremate de uma pulsão que nos faz bichos. Não. Quando dos rituais menos efêmeros, existe uma pitada de sentimento que inverte o eixo da lógica: se antes era necessário rapidez para matar o desejo, agora quanto mais tortuoso o caminho, maior a fome. O amor tem o hábito de se consolidar em bases semelhantes a essas. A felicidade é suprema.

De igual modo, o seu fim parece lento. É como se a bondade do amor, nos idos do princípio, virasse à casaca, mudasse de humor despretensiosamente e quisesse judiar. A praia em calmaria vira ressaca. Da mesma forma que custa a constituir-se, como quem precisa de protocolos e cerimônias para se firmar, o amor também se esvai paciente e, por isso, cruel. A letalidade é ainda mais impiedosa quando, do lado de lá – ou cá – o sentimento se comporta intacto. Ouvir que tudo findou arranha a alma e deixa sequelas que o tempo, dito ‘senhor de tudo’, sofre a curá-las, em especial quando o romance não dura apenas “quinze meses e onze contos de réis”. Todavia, antes de escutar a palavra capital – ‘acabou!’ –, a gente sabe que a rua é sem saída, mas prefere o engano. É segurar alguém pelas mãos, que, por uma força alheia, é levada pela maré de volta ao mar revolto. Como se viver à base de uma esperança fomentada artificialmente, que não encontra resquícios quaisquer na realidade, pudesse redimir o nosso insucesso, que está logo ali, com capa preta e foice às mãos, de prontidão a desferir o golpe derradeiro. A dificuldade de lidar com o fim é evidente: o problema não é apagar o passado, extrair da memória todos os momentos de cumplicidade. A questão é: como abortar todas as projeções? É como se uma máquina, concebida para funcionar de um jeito, precisasse ser reconfigurada, uma vez que a demanda agora é outra. Ofício árduo. A melancolia triunfa sobre a felicidade.

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Respeitando a inabalável 3ª Lei de Newton, se o mundo gerou frustração, normal que o coração embruteça. E o entristecido se fecha pro mundo, desrespeita muitas – pra não dizer todas – formas de sentimento que outras pessoas lhe têm, só porque julga que, caso se entregue, o mesmo infortúnio de outrora cairá sobre ele. Procura garantir que nenhum outro amor fracassado irá derrubá-lo, levá-lo à fossa, lugar de onde as pessoas que vivenciam o amor têm certa dificuldade de sair, quando ele – o amor – vira pó e arrebata. Para saciar uma pretensa necessidade de se proteger, constrói uma caverna, e nela se põe em clausura até que o tempo – de novo ele! – o alforrie dos medos cravados ao derredor da infelicidade. E perturbado pelo receio de notar-se no fundo do poço, anula qualquer chance de estar na condição inversa. É o atleta que, por medo da derrota, recusa-se a competir. Aquele que teme amar outra vez até neutraliza o sofrimento, mas também não regozija. Contenta-se com a passibilidade dos apetites e vive uma vida medíocre. As intermitências da existência escasseiam e inexiste o estímulo de lutar contra o que não se quer. Enfim, a opção por não sofrer é aderir a um trajeto sem curvas: seguro, porém entediante. O medo supera a melancolia e a felicidade.

Quando os olhos castanhos te meterem mais medo que um dia de sol, é prudente lembrar que “quem de dentro de si não sai vai morrer sem amar ninguém”. É possível que sofra? Sim. Com um mundo tão dinâmico e intenso, com tanta gente boa e interessante por todos os lados, a probabilidade de tudo acabar é muito maior. E quem disse que um relacionamento findado obrigatoriamente deu errado? A julgar a nossa quedinha pela rotina, facilitadora de tudo, pois não nos exige qualquer empenho, o muro que separa o deleite e o mal êxito é de areia, prestes a ruir. De certa forma, o amor é um jogo de sorte e azar, sendo que a chance de levar um tombo é hedionda. Assim como na vida, que tende a ser mais triste que feliz. Só que “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste, não”, e a esperança vence a felicidade, a melancolia e o medo.