quinta-feira, 13 de julho de 2017

Saudade: dor e entendimento na metafísica da vida

“[...] mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro” [Machado de Assis, em Esaú e Jacó]

Parece ser consenso entre religiões e doutrinas que negam a religação que a morte é inexorável e representa o fim de um ciclo, seja ele concebido por preceitos divinos ou resultado de embates cósmicos que nos fazem ser apenas uma fração insignificante do universo, desprovido de qualquer protagonismo que o ser humano teima em homologar a si próprio. E ainda que a gente se escore na vida eterna, em outras vidas finitas ou na inexistência de Deus e diabo, o fato é que a morte é implacável com quem vai e tem o talento inigualável de machucar quem fica.

E o medo da perda acaba fazendo da gente o esboço do egoísmo. É comum, à beira do suspiro derradeiro de quem acena um “tchau”, o apego à carne, à pequenez da nossa ontologia que só consegue entender uma fagulha do todo. O todo nos escapa, tamanha a nossa insignificância. Talvez não seja a perda em si, mas a incapacidade de entender o que se passa, o nosso maior monstro, o fantasma que nos coloca de joelhos a decifrar, sem sucesso, o maior enigma que está posto. A gente se habituou a manipular o mundo, a impor a nossa soberania sobre as gentes e as coisas, e quando se depara com a única equação da qual não tem controle, sofre.

A saudade nos traz uma certeza, que é pessimista por excelência: na ausência de quem foi, nada será como antes. É inegável: cada pessoa, na complexidade que é a existência humana, é insubstituível. Por mais que se empenhem, dos que nos acompanham em meio à tormenta só ficará o esforço de consolar, um afago em gesto ou palavra. Em suma, a falta de alguém importante remexe as nossas entranhas, cria-nos vácuos no peito, flashes de lembranças, uma lágrima a arranhar a face... Acabou.


Mas se a saudade só vivesse de infortúnios, ninguém resistiria a uma ausência acachapante. Ela ajuda a amadurecer o espírito, coage a mente a entender que a vida, o tempo todo, também é de perdas. O corpo responde com o pranto e a sensação de que o tempo estacionou, no intuito de aborrecer ainda mais o nosso juízo. Mas ele – o tempo – passa, e a não aceitação dá lugar ao conformismo de que, a partir dali, será assim. Então, o exercício de revisitar a pessoa, num movimento mental de ver quem partiu sob uma outra perspectiva, torna-se praxe. Passamos a pinçar detalhes da história e a ressignificá-los.

[Fonte: www.casamento.culturamix.com]
E essa ação atrasada se dá por um equívoco de cálculo: é consenso entre nós que sempre haverá uma chance de entender o gesto de alguém em vida, sem perceber que acabamos por eternizar o “deixa pra depois”. É só quando não há mais depois que buscamos o aceno, o beijo, o semblante, o sorriso, a palavra, o olhar, uma foto, um cheiro, um lugar. Enfim, qualquer coisa que na displicência da vida não atentamos e que, agora, tem significados que confortam, por um lado, mas por outro frustram em função da impossibilidade de agradecer, não poder mostrar que nada foi em vão.

Hoje, exatamente um ano após a maior perda que tive, não é dia diferente na saudade. Porque não houve um momento, nesses 365 dias, que eu não tenha revisitado aquela que mais zelou por mim, a ela virado do avesso e a mim também. Mas a falta é maior. O ser humano cometeu o erro de encapsular o tempo, torná-lo contábil, e nesse movimento de controlar a realidade, esqueceu-se das simbologias que o titã Cronos poderia criar. Porém, propõe Machado, “este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas corpus”.

Por isso, há que ser otimista também: se alguém não tivesse botado areia na ampulheta, as datas simbólicas não concentrariam as angústias da perda. Sem demarcação temporal, a vida seria uma sucessão constante de lamentações, um “eterno retorno” às avessas do proposto por Nietzsche. No fim das contas, a dor de hoje é a dor de sempre, e assim será até o dia em que eu me tornar a saudade de alguém.