terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Star Wars: por que é desperdício assistir à saga como entretenimento puro e simples

*O texto a seguir contém spoilers.

Diante de uma obra de arte complexa – seja ela de que natureza for –, há um benefício e um prejuízo ao conhecê-la tardiamente: é passível de lamentação porque nos damos conta de que algo tão bom poderia ser visto antes, mas, por outro lado, entrar em contato com uma produção cultural já com maturidade permite apreender significados que não seriam captados numa idade menor, sob um repertório mais limitado. Prefiro levar o último argumento em conta para justificar o meu encontro inédito, no último final de semana, com os sete episódios de Star Wars, como forma de me preparar para a estreia mundial do próximo longa da série, quinta-feira, dia 14.

Logo na primeira trilogia – episódios IV, V e VI – já é possível constatar que George Lucas concebeu uma história à frente de seu tempo, fazendo dele uma figura genial não só com lugar cativo na história do cinema – como roteirista, produtor e diretor –, mas também no âmbito da literatura de ficção, como autor/escritor. Tentemos entender por que o norte-americano é tudo isso e mais um pouco, conduzindo a reboque a sua obra para o patamar das maiores produções cinematográficas com registro na história. O meu relato traz percepções originais a partir dos sete longas, sem que eu me permitisse fazer qualquer tipo de pesquisa a respeito da história e dos filmes.

Toda a sequência é permeada, especialmente os episódios de I a VI, por aquilo que defino como dois grandes conceitos, cujo domínio do autor é flagrante, e que ficam evidentes em Star Wars: Filosofia e Mitologia. O controle por parte de Lucas de diferentes teorias e narrativas é tamanho, que não restam dúvidas de que todo esse arcabouço é usado sem despretensão. Não há ali nada que seja involuntário, sem querer. As recorrências que o autor faz à filosofia e à mitologia são cirúrgicas, e isso fica transparente em uma narrativa densa, compassada e que não confunde o espectador, embora exija deste um olhar bastante atento.

No campo da Filosofia, é possível identificar conteúdo consistente sobre conhecimento, ética e política. A respeito da epistemologia [ou Teoria do Conhecimento], o autor dilui ao longo da sequência cenários que se apropriam dos quatro elementos da natureza: ar, terra, fogo e água. No vídeo abaixo, entenda que referência o autor utiliza para abordá-los, tendo ainda na Alegoria da Caverna, de Platão, uma outra ancoragem da sua narrativa:


No âmbito da ética, os guerreiros Jedi prezam pelo dever. Para eles, é preciso ter em mente que ser um guardião da galáxia impõe certos sacrifícios, aos quais qualquer um de nós está suscetível: os dilemas entre aquilo que queremos e podemos, mas não devemos fazer. Estamos aí no coração da filosofia moral de Immanuel Kant, pensador alemão do século XVIII, fundador da corrente ética denominada deontologia: pautado pelo imperativo categórico, ou seja, agindo de tal forma que a máxima da conduta possa se tornar lei universal, o indivíduo pauta suas ações em princípios, ainda que o resultado delas não seja positivo. A intenção é o fundamento da moral kantiana, em oposição ao pensamento pragmático de Maquiavel, italiano do século XVI, cuja assertiva é “os fins justificam os meios”, sendo permitida, neste caso, qualquer ação para conquistar o objetivo traçado, mesmo que isso fira [física ou moralmente] outras pessoas envolvidas. Está claro, no antagonismo complexo entre pai [Anakin] e filho [Luke], quem adere a uma e à outra corrente.

Por fim, acompanhe no vídeo a seguir uma análise sobre como o cineasta transita pelos conceitos da teoria política:


Saindo da filosofia, Lucas se ancora muito na mitologia de origem grega. A oposição entre caos e ordem é presente o tempo todo nos sete episódios. Impossível não mencionar a explicação que a mitologia grega dá à origem do universo. No princípio de tudo, era o caos, representado pelos Titãs, uma vez que as divindades na tradição grega são imanentes e múltiplas [politeísmo], e não transcendente e única [monoteísmo] como no judaico-cristianismo e no Islamismo. Os deuses Titãs rivalizaram com os Olimpianos, aqueles que pretendiam estabelecer - e foram bem sucedidos - a ordem no cosmos.

Nessa esteira, é imperativo recorrer a outro elemento da mitologia grega: os conflitos entre pai e filho, sempre muito presentes na literatura e na história do período clássico. O líder dos Titãs era um deus chamado Cronos [tempo], que rivalizou com seu pai, Urano [céu], um dos primeiros deuses a existir, juntamente com Gaia [terra] e Caos [queda]. Cronos, ao pressupor que teria o mesmo fim de seu pai, tratou de se resguardar, enquanto pôde, da ameaça dos próprios filhos, destino que foi selado no confronto com o mais novo deles, Zeus. Outro exemplo se encontra na história escrita por Sófocles: Édipo, ao nascer, teve a própria vida encomendada pelo pai, Laio. Não sendo bem-sucedido o assassinato, anos depois ambos, sem saber das identidades de um e outro, se encontram, e o fim é o mesmo: o pai é morto pelo filho. Outros dois episódios, esses comprovadamente verídicos e mais conhecidos pelo senso comum, podem se encaixar nesta reflexão: Alexandre Magno, durante muito tempo, foi considerado mandante da conspiração que matou seu pai, Filipe II, rei da Macedônia, nação que já dominava a Grécia. A seguir, conhecemos a história do imperador romano Marcus Aurélio, morto pelo filho Commodus. A narrativa de Star Wars não poupa elementos dessa natureza, seja com Anakin e Luke, seja com Han e Ben, cujo desfecho é a morte dos pais pelos próprios filhos. Mais mitologia grega que isso, impossível.

Ainda no campo mitológico, Star Wars é carregado de elementos bíblicos: [1] O fruto proibido, o amor que não poderia se consumar pela possibilidade de desencadear desgraças (Anakin e Amidala são a metáfora do casal que protagonizou o pecado original, Adão e Eva); [2] Bem x Mal; [3] Luz x Trevas; [4] a ideia de alguém “escolhido” [referência ao Messias], pobre, em meio à escravidão e sem pai [é o caso de Anakin e, por que não, de Moisés e do próprio nazareno], em quem todo um povo deposita a esperança de libertá-lo da opressão [menção a hebreus/judeus]; [5] a separação da mãe para cumprir o seu destino, tendo a possibilidade de escolhê-lo ou recusá-lo [é muito Jesus pro meu gosto!]; [6] uma tal Ordem 66, já na transição da República para o Império, numa citação ao número da Besta [666]. Com evidência, são elementos que caracterizam a sequência. Porém, há um que, logo de cara, dá uma chave importante para desvendar os enigmas da obra: o nome Skywalker. Numa tradução sem muito rigor, poderíamos encontrar anjo. O primeiro nome do protagonista da saga é Luke, uma abreviação ou apelido para Lucas, proveniente do termo latim Lux, ou seja, Luz. Agora ficou fácil: Luke Skywalker é o Anjo de Luz, enquanto que o pai, Anakin Skywalker, é também anjo, mas aquele que cai, que se entrega ao medo, ódio e à arrogância. Lembrou Lúcifer, anjo que se rendeu às tentações do mal porque tinha a pretensão de ser maior do que Deus. Cristo foi tentado no mesmo sentido, mas não sucumbiu. Até o momento, Luke é um cristão inveterado.

Dois anjos se enfrentam: o filho, Luke [à direita], que se manteve fiel ao ensinamento Jedi,
e o pai, Anakin, anjo decaído já sob as feições de Darth Vader [Foto: www.reddit.com]
A obra de George Lucas contém toda essa gama de teorias, conceitos, nomenclaturas que a torna especial. Nesse aspecto, o último episódio [O despertar da força, 2015] destoou negativamente dos seis anteriores, pois se propôs mais ao entretenimento. Com raras exceções – como no discurso político de ódio, no trabalho com diferentes elementos da natureza e no confronto entre pai e filho –, o último filme da sequência não resgatou a essência complexa e rica idealizada por Lucas. Algo a se lamentar, já que o escritor, roteirista e diretor criou, na combinação de elementos díspares já existentes, uma mitologia à parte, assim como fizeram J. R. R. Tolkien [O Senhor dos Anéis], J. K. Rowling [Harry Potter] e George R. R. Martin [Game of Thrones]. Dos quatro aspectos essenciais a uma narrativa [tempo, espaço, personagens e conflito], os três primeiros são originais, exclusivos da saga. Ainda assim, não abriu mão do receituário que sempre dá certo: recheou a história com romance, humor, perseguições, corridas, lutas, tiros, mortes. Não tinha como dar errado.

Alguém poderá se perguntar: se eu não detiver os conhecimentos sobre filosofia e mitologia apresentados aqui, não entenderei o filme? Entenderá, mas sob outra perspectiva. Do mesmo modo que uma pessoa, detentora de informações que vão além das minhas, apreenderá um significado mais completo e fiel da obra. Na pior das hipóteses, a saga poderá se resumir ao seu próprio título, em que seres humanos, monstrengos e robôs se confrontam para manter o caos ou estabelecer a paz. Não importa. Já terá valido a pena. 

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